Thursday, January 11, 2007

PÉ DE ANJO

Posted by Picasa A negra Tereza, vizinha de dois barracos adiante se orgulhava de tê-lo amamentado quando o leite secou no peito da mãe, pouca coisa mais que dois meses depois de parido.

Com o negrinho as coisas se antecipavam: caminhara aos sete meses, acordava sempre antes, precipitava-se em suas alegrias, adivinhava as falas, antecedia as desilusões, sofria precocemente. Na hora certa, exata e aprazada, somente o petardo: nem antes, nem depois – certeiro e justo.
"Pé de Vento" era como o chamava a clientela da negra cujos muitos quilos recomendava as boas marmitas que fazia. Do filho não cobrava mais que suas carreiras na entrega do sustento. De instrução, muito pouca. O futuro do negrinho estava mesmo nos pés.

Rápido como o vento, disputava carreiras com os veículos, perdendo todas, metros adiante, pondo a culpa no fôlego que lhe faltava, arquejante e sorridente.

Nos altares da minha infância, lá estava sempre com asas nos pés, nos incríveis dribles das peladas da rua. Verdade que negros, não os encontrava barrocos entre tantos outros louros que adornavam a Matriz.

Nunca ninguém soube seu nome e pouco importava que tivesse. "Pé de Anjo” para nós era "Pé de Anjo" e só. Era como todos os chamavam entre os gritos de "passa a bola" ou "chuta logo". O que fazia com perfeição diante da pequena platéia de operários onde era erguido o monumental estádio. Suarento, sentava-se ao final de cada partida no chão de terra batida e sonhava um dia transpor o tapume que delimitava o espaço, junto à entrada da geral do Maracanã, em final de obra.

Assegurava a todos que um dia, do lado de fora, ouviríamos os gritos da torcida do seu time, a incentivá-lo nas arremetidas em direção ao gol. Não sei onde foi arrumar as chuteiras velhas que calçava, meio desequilibrado. Mas os protestos da molecada descalça foram tantos que não mais as usou. Onde já se viu pé de anjo de chuteiras?

O pai morrera de tísica, garantia. Certo mesmo é que jamais o tivera. Mas isso pouco importava, superior na qualidade daquilo que mais gostava de fazer: correr uma corrida inútil e sempre perdedora contra tudo que se locomovesse a motor ou deixar caídos para trás os moleques do time adversário.

"Pés de príncipe!", ria-se dele a mãe, nos poucos momentos de rir.

Na segunda-feira, a caminho da feira do Campo de São Cristóvão, a desabalada carreira num revezamento de pés impulsionando o carrinho de rolimã que garantia com os carretos um troco mais ao sustento do barraco. Hora da entrega da marmita e a disputa com o bonde de São Januário. Uma boa arrancada – perderia, é claro, qual ser movente poderia encarar a máquina no cio, ladeira acima? Mas acenariam lá de dentro todos os operários – “Pé de Anjo”!, “Pé de Anjo”!, assim como gritam em dia de descanso, à beira do campo de várzea, quando ele, enlouquecido, arranca novamente desmantelando a zaga adversária.

Um dia, "Pé de Anjo" não apareceu para a pelada. E o aroma da carne assada, banhada no feijão, que a mãe mandava para a freguesia, deixando um rastro de sabores que sinalizava a hora do almoço, não mais aguçou o apetite da vizinhança.

Nessa noite, ele antecipa e dormem os outros – Minguinho, Trolha e Zé Baião; Cafuné, Orelhinha e Delson; Joãozinho de Irene, Índio, Nonato, Tião da Timbira e Mangueirinha. Entre o sono de Nonato e Manguerinha, a sua vigília.

De costas, mãos cruzadas sob a nuca, sorri quando ouve o primeiro canto de Trasontonte, o único macho que com ele disputava os sorrisos de sua mãe. Conta os regulamentares doze segundos e ouve o galo de D. Arlinda cantar, seguido de outro e de outro ainda mais. Sabedor de que “um galo sozinho não tece a manhã”, espera que os cantos se confundam e entreteçam a aurora.

O canto estridente do galo cede vez ao despertar com o rádio bem baixinho na esperança de ouvir uma palavra de Jaguaré. Cedo demais. Um passo pra fora e recolhe os uniformes do Leão de Ouro, as meias ainda úmidas. Alisa as camisetas, os calções, arranja no saco de estopa, ganha a rua.

Cinco quarteirões até o campinho. O ar morno, o compasso de seu coração e o cheiro da dama-da-noite acabam por chamar seus companheiros: Ademir Menezes o alcança na primeira esquina, chuta a bola para defesa de Barbosa. Riem os três, já sabendo do que acontecerá naquela manhã, o Leão de Ouro levando a Taça do Campeonato de Várzea, com dois gols irretocáveis saídos daqueles pés de anjo. No quarteirão seguinte Jair bate uma falta e junta-se ao passo gingado do grupo. O sol já se denuncia, bola vermelha alçada ao céu. Se alegria tem nome e jeito, ele sabe que deve ser isto que sente agora e mais o cheiro de couro das chuteiras que traz na sacola a tiracolo. Carrega-as e não mais as calçara desde o protesto dos meninos, embora os pés as reclamassem.

Tesourinha e Heleno surgem no último quarteirão. Elogiam as camisas improvisadas, passam os dedos na faixa preta, lambuzam a cruz vermelha e se borram nas tintas vagabundas. Ri com eles, nem se importa. Amigos, daqueles de passar a mão na bunda em sinal de apreço. Sabe que alcançado o campinho suas brincadeiras não mais existirão, suspensas até a madrugada do domingo seguinte.

A Copa do Mundo de 50 trouxe-lhe algumas lágrimas, mas não lhe apagou o sorriso da esperança.

- Esperem que numa próxima estarei lá para ajudar a molecada a trazer o caneco. À sua volta, debochávamos, mas com certo respeito. Tião da Timbira nunca o poupava das gozações e emendava com um “só se for como marmiteiro da Seleção”. As desavenças entre os dois cessavam no campinho em trocas de passes perfeitos, seguidos de abraços sob gritos de “gol!”.
Os anos correram mais que seus pés e nunca ouvimos a multidão gritar seu vulgo no Maracanã. As notícias chegavam pelo vento. Diziam que era dono da cantina próximo ao campo de várzea, onde o consumo da bebida se tornava cada vez maior; outros afirmavam que era técnico do Leão de Ouro, cobrando sempre velocidade e toques de bola dos seus jogadores, só satisfeito quando todos resfolegavam ladeira acima, ladeira abaixo, no campo ao pé do morro.

– Pois é, doutor, teve jeito não... A pereba não curava e o jeito foi cortar o pé mesmo. Não sei para onde meu pé foi...

Não fosse o sorriso alvo, não o identificaria pelas têmporas grisalhas e as profundas rugas, marcas da vida e do sofrimento.

Silenciosamente afastei-me e me dirigi ao Serviço de Patologia. Lá estava ainda o pé. Por momentos, tive a impressão de vê-lo com asas...
(Este conto teve como co-autora Teresa Melo)

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