Sunday, March 11, 2012

A CREMAÇÃO


O corpo ainda quente, papa-defunto à postos, lágrimas a escorrerem pela face da irmã, suspiro de alívio do marido pelo desenlace e... O cunhado toma a palavra.
 
Pigarreia e solene defende a última vontade da morta:

- Temos que cremá-la. Matilda manifestou isso em cartório, cumprindo na época o que determinava a Lei.

A concordância é geral, mesmo considerando a fila de espera, com data no forno só para a semana seguinte.

Segue-se a penúltima vontade, entre outras da lista deixada por Matilda.

A palavra é dada ao sobrinho Euzébio, tido e criado como se filho fosse. Pragmático, colocou para todos suas considerações:

- Parece-me extravagância o envio das cinzas para serem dispersas nos jardins das Tulherias. Tia Matilda só esteve em Paris uma única vez e assim mesmo num pacote turístico. Não sei onde ela foi buscar a ideia de baixar o espírito de Catarina de Medicis e plantar seu tempo livre agora por lá. Por que não Praça Paris? Com o euro nas alturas, vai custar uma nota...

Imediatamente é interrompido por Genoveva, a irmã a quem Matilda só tratava por Geneviève:

- Poderíamos mandar a urna pelo Sedex para a Lucinda. Não era ela a grande amiga dos tempos do Sacre Coeur de Marie?

As más línguas diziam que Lucinda apaixonara-se pela baguette do atual marido François e fora de mala e cuia para Paris, gerenciando a brasserie do marido, na Rue des Ecoles.

- Sedex?

- E por que não? Pelo Sedex 10 a entrega é rápida.

Pessimista, Alfredo, o outro cunhado, faz considerações sobre os serviços dos Correios:

- Vocês não leem mais jornais? Várias reclamações de que os envios não chegam ao destino...
- E alguém lá vai querer ficar com cinza de defunto desconhecido?

A sugestão do Sedex é aclamada por unanimidade.

Genoveva pega o celular e liga para Lucinda, a grande amiga do Sacre Coeur a quem solicita que acolha a urna e espalhe Matilda, nos jardins das Tulherias. A amiga pede apenas que aguardem um retorno, pois terá que falar com François, seu marido. Afinal, acolher mais uma mulher em casa, mesmo sendo em cinzas, não é uma decisão a ser tomada unilateralmente.

Tudo caminhava às mil maravilhas, não fosse a última das últimas vontades de Matilda de que as cinzas fossem espalhadas ao som da “Marseillaise”.

O sobrinho, sempre muito atual com as novas tecnologias não vê dificuldade na era dos Ipods, mas lembrando de que o patriotismo francês pode levar a estudantada da Sorbonne a um levante pelo uso do hino num evento funéreo particular.

Todos concordam que esta vontade fique esquecida pelo transtorno que pode trazer a François e Lucinda.

O velório não foi dos melhores aos olhos do papa-defunto. Depois que inventaram a cremação, com longas filas de espera, o movimento caíra muito e os investimentos também. Muito poucas flores e coroas e caixões de poucos entalhes e nenhum bronze.

- Já não se tem mais defunto como antigamente.

Dia da cremação, só a família convidada desmotivara os amigos de Matilda a lhe prestarem as últimas homenagens. Muitos telegramas e poucas presenças no velório davam a impressão de estarem todos de férias, tantas às desculpas com viagens.

No dia seguinte, lá estava o circunspecto cunhado, mas nem por isso sem o comentário jocoso, a receber a urna:

- Finalmente Matilda chegou ao peso com que tanto sonhava. Quem diria que com aquele corpo fosse caber numa caixa desse tamanho...

E foi com Matilda debaixo do braço para a mansão dos Miranda Junqueira.
Fútil, como sempre fora, a amiga Heleninha fez considerações sobre a caixa:

- Matilda merecia uma urna melhor. Vi uma num antiquário, lindéeeeesima, com aplicações de pedras semipreciosas. O superlativo era de uso comum no vocabulário de Elisinha e ela não deixaria passar em branco a simplicidade da caixa, chegando a compará-la às da sapataria de grife onde se abastecia de saltos altíssimos.

- Onde coloco a urna?

- Ponha em cima da mesa...

- Mesa de jantar?

Era mesmo de espantar imaginar as cinzas de Matilda como décor.

- Na cadeira ou no sofá é que não pode ser, pois acabariam sentando
em cima da Matilda.

E por lá ficou Matilda até seguir pelo Sedex rumo a Paris, deslocada sempre nas horas de refeições para um canto da sala, onde, vez por outra, era lembrada pelos gritos de que “Mimoso”, o gato, iria urinar nela...