Monday, February 24, 2014

INFINITO FINDÁVEL


O tempo infinito um dia se findará. Mas restará a memória da longa estrada por onde caminhei desde os gritos de “Aúa” que me assustavam quando eu caminhava pelas mãos da ama até a pracinha florida pelos flamboyants da minha infância. “Aúa”, a menina excepcional  prisioneira pela incompreensão familiar, cujo som do inconformismo saia das frestas da janela.
Não cumprirei um roteiro. Deixo para quem suportar a leitura que o faça. Textos, contos, fatos e experiências são elos da corrente da minha vida que surgem do baú imaginário e que aqui ficarão desordenados em seus momentos caleidoscópicos, ora formando intrigantes desenhos, ora apenas cacos. Mas,  sobretudo, sem pretensão literária.
Mas uma história pede um início e ele surge no...
CASARÃO
No centro de um grande terreno cercado por dezenas de árvores frutíferas, o casarão brigava por trás de suas paredes aqui e ali já descascadas os três salões, onze quartos e a biblioteca de milhar de volumes e traças do tio esquizofrênico. A parte de serviços tinha no fogão da cozinha minha principal atenção pelo cheiro da banana dourada e caramelada cujo ponto certo era determinado pela minha avó cega e bondosa.
Pela cozinha, tinha-se acesso ao quintal através da escada de granito, com gradil de ferro. No quintal o grande tacho de cobre com a goiabada fervente enriquecia ainda mais de aroma o que por mim era visto como pomar e jardim zoológico, tantas eram as árvores frutíferas e pelos pequenos animais trazidos ainda vivos pelos tios caçadores.
No corredor, o telefone que raramente tocava. Na copa, a velha mesa quadrada cercada de não menos velhas cadeiras para onde éramos chamados às refeições. A geladeira GE completava o mobiliário e revelava o patamar superior da burguesia da época.
Uma escada sinuosa de madeira com o corrimão lustrado pela bunda dos netos da matriarca levava moradores e visitantes ao porão impregnado pelo cheiro do sabão português esfregado na lavanderia de dois grandes tanques de cimento pelas mãos vigorosas da lavadeira Guilhermina nas montanhas de roupas dos moradores do casarão e dos internos do Ginásio Vera Cruz fundado por meu avô João Autto. E no porão, o ir e vir do ferro a carvão de Acácia, a passadeira de um único cântico repetido horas à fio – “tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá meu pensamento”. O pensamento de Acácia ia para o marido cego José, cuja chegada era anunciada  pelas bengaladas na parede descascada do casarão.
Era no porão que ficavam quatro dos onze quartos espaçosos, o banheiro dos empregados com a banheira esmaltada focada pelo meu olhar no buraco da fechadura e uma despensa com a chocadeira, para onde iam ovos de germinados. Passadas algumas semanas as cascas iam sendo abertas pelos bicos dos pintos que tornados frangos iam para a panela, complementando nossas refeições. Só as frangas sobreviviam à chacina para que outros ovos fossem geminados por “Sultão”, o galo senhor do terreiro e do canto nas manhãs da minha infância.
A sala de jantar em tons amarelo e dourado e suas belas sancas revelava ainda certo luxo no mobiliário, com a mesa para dezoito lugares, dois grandes etagères com tampos de mármore verde rajado e a cristaleira a reunir serviços de cristal Baccarat e Saint Louis. Finas porcelanas de Limòges e Rosenthal nunca usadas nos muitos anos em que por lá estive eram mantidas a sete chaves nos etagères.
A sala de visitas, de móveis negros Leandro Martins, era forrada de tecido de seda grená estampado com flores de Lys douradas. O mesmo tecido forrava poltronas, sofás e cadeiras. A destacar, o par de quadros retratando meus bisavós maternos, João Augusto de Macedo Soares e Gertrudes, que mostravam o talento do meu avô João Autto por seu domínio com os pincéis que muito comoveu os sogros retratados. E que despertaram ainda menino minha paixão pela arte.
À sala de espera era do mesmo tecido em tom azul escuro, com as mesmas flores de Lys estampadas. Poltronas, sofá e cadeiras, igualmente forradas com o tecido que cobria as paredes, a mesa central e um aparador de pés altos e torcidos no estilo “Manoelino” completavam o conjunto. Grandes cortinados de renda e seda escondiam portas de acesso e janelas de onde se via o jardim de uma única roseira e grama crescida sinalizando o abandono.
Todas as portas da área social davam para a grande varanda de azulejos franceses e, desta, para as duas escadas de mármore que nos levavam ou ao quintal ou ao portão principal.
O silêncio das noites era quebrado pelo pio da coruja, pelo sibilar do vento e pelo farfalhar das folhas secas nas caminhadas dos que saiam em busca dos prazeres da boêmia. Dentre eles, os tios mais moços, apareciam no casarão com Noel Rosa, que não cheguei a conhecer.
Era um tempo de histórias e fantasmas. Das fugas de Honorina, o bicho-preguiça, para o quintal do vizinho “Cuco”, que aparecia na janela gritando que fossemos buscar o animal inofensivo para que voltasse ao
 ipê do quintal.


BANHOS MEDICINAIS

Olhava o mar e não entendia o movimento das marés... Como ele poderia curar-me da dispnéia provocada pela asma que me atormentava? Por recomendação médica era levado à praia de Copacabana pela negra Orumba Paracatu Mandina, a neta de escrava africana que fora comprada para serviços pelo meu bisavô, senhor de terras em Saquarema.

Olhos perdidos no horizonte azul e o pestanejar com as ondas explodindo antes de chegarem mansamente a meus pés, acariciando-me com sua espuma. Mas o mar me metia medo... Um medo que me queimava o peito como os gritos de “Aúa”... Distraia-me em olhar para as papadas quando molhados que se formavam nas entre pernas das banhistas, em seus maiôs de malha de lã.

Alfabetizado muito novo no Ginásio Vera Cruz fundado por meu avô, lia os jornais, atendo-me ao diário de “Giselle, a espiã nua que abalou Paris”, publicado no vespertino carioca “Diário da Noite”. A compra dos jornais era uma de minhas tarefas. O prazer da leitura das sacanagens de Giselle com os nazistas compensava a caminhada até o Largo do Maracanã, próximo ao morro da Mangueira para onde também ia juntar-me a molecada para as peladas. Péssimo com a bola nos pés, pegar no gol era minha sina pela qualidade de ser o dono da bola.

Tempo das manchetes de uma guerra só sentida pelo racionamento do pão de tostão da “Padaria Colombo”, uma homenagem equivocada do “seu” Joaquim ao descobridor do Brasil. E das conversa dos adultos sobre os valores nutritivos das batatas que alimentavam famílias inteiras durante a guerra, a justificar a sua presença sempre à mesa, fossem fritas, cozidas ou assadas. Tempo dos meus pesadelos com os ratos que infestavam o casarão, influenciado pelas narrativas de que serviam de alimento aos guerreiros famintos. Estranho mundo que fazia guerras pela paz, formando novos impérios. E despersonalizando povos milenares em suas tradições.

Crescendo, fui ganhando o mundo negado a “Aúa”. Pela voz de Orumba Paracatu Mandina, conheci o canto triste dos negros de quem fora roubada a liberdade.

Um dia qualquer dos anos de minha infância Orumba sumiu. A falta era explicada pela morte. Liberta pela Lei do Ventre Livre, morrera de nó nas tripas depois de sofrida prisão de ventre. Quanta contradição!