Saturday, November 08, 2008

UM RIO DE MUITAS SAUDADES

Dizer que sou saudosista me envaidece. Afinal, sou do pão do tostão, moeda da qual muitos dos que me lêem sequer ouviram falar. Adquiridos numa das muitas fornadas na Padaria Colombo, cujo proprietário português misturou a História e resolveu homenagear o descobridor do Brasil. Mas se misturou a História, justiça seja feita, na farinha não havia bromato.

Era um Rio sem pressa, com bondes da Light cujos trilhos vivem sepultos pelo asfalto por onde hoje vidas se perdem na velocidade por vivê-las. Mas como as diferenças sociais sempre existiram, não seria este meu Rio de viva memória que deixaria de ter o ''taioba'', um bonde misto de preço bem mais barato, transportando, além dos passageiros, os balaios de verduras, frutas e flores que iam sendo distribuídas durante o percurso. Para os mais afortunados, a Light oferecia seus ônibus cinza competindo com as primeiras viações que surgiam para começar a dar pressa à vida dos cariocas.

Violento, afirmo, não era. De pior, tínhamos o Zé da Ilha, inimigo público número 1, cujo crime maior fora ter aberto uma navalha e passado nas pernas dos passageiros que viajavam no estribo do bonde ''Vila Isabel''. O feito teve como palco o Boulevard, hoje Avenida 28 de Setembro, cuja data, confesso, não me traz nenhuma lembrança.


Imagino que nem tenham sido muitos os estragos feitos por Zé da Ilha, afora uma e outra calça dos ternos de casimira inglesa, tropical brilhante ou linho S-120 que, passadas nas mãos de uma boa cerzideira invisível, não tenham sido recuperadas. Zé da Ilha morreu numa troca de tiros com a polícia, à época de boa pontaria, pois não houve registro de bala perdida e achada no corpo de alguém.


Saudades de um Rio de casarões cercados de pomares, com mangas rosa, espada e carlotinha, entre goiabeiras, caramboleiras, abacateiros, nespereiras, abieiros e sapotizeiros, por onde esvoaçavam pardais e rolinhas de dia ou morcegos à noite.


Um Rio perfumado pelos jardins onde floriam jasmins e roseiras.


Um Rio com o mar de Copacabana, aonde chegávamos para os banhos medicinais que complementavam tratamentos homeopáticos, depois de saciados pelo suco de laranja da "Americana", do Hotel Avenida.


De ruim, a bem da verdade, os maiôs de malha de lã a formarem papadas nas entre pernas das banhistas.


Um Rio de um Salgueiro, de onde saiu Bala, compositor e engraxate, a batucar com o pano que lustrava nossos sapatos os sambas que cantarolava.


De uma Mangueira, cujo marco era o Esqueleto, onde hoje é o campus da UERJ, no Maracanã. Mangueira que deu Cartola, Neuma e Zica.


Era um Rio horizontal, inundado de sol e chuva. Havia lama barrenta, mas bem diferente do mar que hoje nos assusta inundando os altos escalões dos governos.

ROSÁRIO


I
DOLOROSOS
O bar está ali há tanto tempo que nem importa saber sua idade. Surgiu com a cidade. Discretamente, de um ângulo privilegiado da praça, frente à porta lateral da igreja, a tudo observa. As paredes, grossas de sucessivas pinturas, contam a cada camada histórias de diferentes épocas e proprietários. Duas portas de madeira carcomida, fechadas respeitosamente diante de incontáveis enterros e procissões, deixam entrever o interior escuro e abafadiço.

Assim que os olhos do visitante se acostumam à penumbra, revela-se um enorme balcão, igualmente sem idade, estendido junto ao fundo e a uma das paredes laterais. Ao longo da outra parede, cinco ou seis mesas bambas com suas cadeiras de assentos lustrados pelos freqüentadores que se reúnem nos finais de tarde em comentários sobre as nunca mais de duas ou três raparigas do bordel de madame Dominique, uma polaca que por ali chegara fugida das botas nazistas lá pelos anos 30.

A parca iluminação não esconde o pó e o bolor das prateleiras, repletas de um amontoado de garrafas e copos engordurados. Atrás da máquina registradora, uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida e o pôster do Palmeiras Campeão Paulista de 1976 disputam, lado a lado, as homenagens das flores de plástico dentro do copo. Os segundos de pouco silêncio eram quebrados pelo irritante tic-tac do carrilhão que devorava as horas dos bêbados obrigados ao retorno do tédio domiciliar, com as mesmas reclamações seculares de que “aquilo não era vida”.

O cheiro das frituras engorduradas nada dizia de que fossem bons os tira-gostos que ainda assim eram consumidos por um ou outro desavisado operário que por lá passasse a caminho das obras que teimavam em tentar fazer crescer a pequena São Benedito do Bom Refúgio, nascida do parto das fugas dos escravos, seus primeiros moradores que por lá se escondiam.

Sentado numa daquelas mesas, protegido pelo lusco-fusco, um observador atento poderia fazer a crônica diária da cidade: qual beata está adoentada e não compareceu à missa das sete; que cidadão embarcado no ônibus das sete tem negócios a tratar na capital; quanto tempo durou a confissão da mulher do prefeito; qual será a próxima geração de boêmios que flana pela praça, matando as aulas; todos os casamentos, batizados e enterros.

E, quando as pequenas corujas deixam a torre do sino, quais os incautos casais que trocam trêmulos beijos nos desvãos das paredes da igreja zelosamente cuidada pelo Padre Cartazone, um italiano cinquentão que, diziam as más línguas, pastoreava duas ovelhas Filhas de Maria, na sacristia.

É ali, instalado na última mesa, que Dozinho resiste. Só ali a tranqüilidade para olhar e, ultimamente, para escrever, antes que a procissão dos bêbados e miseráveis se interrompa na ocupação das mesas e nas solicitações gritadas e atendidas imediatamente por Oriovaldo, o garçom, sob o olhar fiscalizador do seu Almeida, da segunda geração de proprietários.

Os humores de Aracy começam a atrapalhar os pensamentos de Dozinho. Os deles, mesmo, e os dela, própria. Aracy delira. “Quanto será que custa um sino de bronze da Itália, Dozinho?” Ora, veja... “Quanto você acha que vale o terreno do bar, Dozinho?” Tem cabimento? Deve ser a idade. Deve ser porque não tivera filhos. Útero seco, o dela. O dele, não. O dele é um útero quente e fértil: a mesa do bar.

Dozinho se integra ao ambiente pela cor mortiça, palidez pela constância dos dias que no bar se perde, bambo como as cadeiras nas seguidas idas ao mictório por ingestão das garrafas de cerveja que lhe faz, ainda, embotado na conclusão do romance com o qual a todos diz ganhará a notoriedade literária.

Dozinho só desprega o olhar das páginas que trazem a inutilidade dos seus pensamentos para o copo ou para um evento ou outro, muito raros por sinal, que traga maior movimentação à praça.

Tantos projetos perdidos no achado de Aracy; num casamento que o levara parte da vida ao caminhar entre as duas monotonias, da casa e do bar. Casa e bar? Mas se foram tantas às vezes que se confundiram sobre a melhor ou pior acolhida.

Histórias perdidas em soluços de embriaguez. Confusas histórias intermináveis, assim como sua própria vida que lhe parecia não vir a ter desfecho. E a obsessiva curiosidade de Aracy aos valores que nada lhe diziam.

Temia vir a se tornar uma figura folclórica da cidade, como a Maria Benzedeira ou o João do Sebo, este por confundido pelos mal informados como dono do açougue e, na verdade, dono da papelaria, onde, a um canto, amontoavam-se volumes desprezados, com suas páginas consumidas mais pelos cupins do que pelos olhos de seus antigos donos.

Havia, como dona Adelaide Maria, misto de mulher letrada e do lar, um ou outro que não aceitavam vulgos que não se enquadrassem aos hábitos e costumes daquela pequena cidade interiorana e para os quais João era João, sem o Sebo. Mas isso é outra história que não desmerece o folclore que abundava a região, enriquecido pelos ditos, benditos e malditos do que aqui vai narrado.

Já não eram mais perguntas, mas verdadeiro martírio a curiosidade de Aracy. Aquilo o desconcentrava e na linha que estivesse por ali parava. E não voltava ao texto, posto numa acumulação de calhamaços, fruto da perda da tranqüilidade que imaginara encontrar na mesa do bar, seu quente útero, já agora nem sempre fértil, ainda que úmido pelas garrafas esvaziadas à sua frente.

Dali se distanciava ao final de cada tarde, respondendo aos cumprimentos com um toque no chapéu desabado como sua própria vida.

A crença de Dozinho na fama que conquistaria pelas letras levava-o a imaginar-se numa estátua ou mesmo que fosse num busto de bronze como o de Graciliano Ramos, próximo ao palanque de onde vinham os sons nas domingueiras da praça, trazendo junto os perfumes das senhoras e senhoritas no ir e vir pela calçada em frente ao bar a misturar-se aos dos jasmineiros, aqui e ali despontados pelo carinho de Josenildo, o orgulhoso jardineiro que cuidava para que o Pau Brasil fosse sempre lembrado pelas mais afoitas.
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Mas para tanto, dizia Dozinho, duas coisas teriam que ser terminadas, ambas de desfechos imprevisíveis: o romance e sua própria vida.

Próximo de poder ser titulado autor e lá vinha o massacre de Aracy: "Dozinho, quanto terá custado o funeral de seu Sidônio?" E mais uma vez interrompia a página do romance, ainda que chegando às letras como o personagem que alimentou essa história.

II
GLORIOSOS

– Dozinho!

O grito ecoa no quarto como um trovão. Abre um olho e lá está Aracy a sacudir a folha de papel. Abre um olho, já que os dois seria impossível pela carraspana da véspera.

– Levanta homem de Deus... Finalmente chegou a resposta da editora, junto com o contrato.

Ora, isso lá é jeito de acordar alguém? Contrato, que contrato? Mas Aracy estava ali sacudindo a folha de papel qual bandeira agitada num estranho festival... Quem dissera isso? Ah, sim, Orestes Barbosa, em “Chão de Estrelas”, tantas vezes tocada na máquina de moedas no fundo do bar, o palco sem lume dos andrajosos freqüentadores quase todos sustentados por suas mulheres fiandeiras da cooperativa de artesanato.

Lá fora, na rua, a notícia já chegara e um grupo aguardava na porta sua aparição.

– Vá lá Dozinho, dê apenas um aceno para eles. Não imagina o que isso vai representar para a nossa cidade. Quem sabe seu romance vira roteiro em Hollywood? Não viu o Paulo Coelho?

Mas como? De pijama?... Cabelos em pé, nem mesmo os dentes escovados e aquele gosto de guarda-chuva na boca... Ah, coisa mais idiota, como se alguém já o tivesse chupado.

A menção do Paulo Coelho encheu-o de brios. Comparar o seu romance aos do autor de O Alquimista era não reconhecer seus méritos literários. Que se danasse Hollywood... Qual obra de Machado de Assis merecera as atenções dos produtores e diretores hollywoodianos?

Jogou por cima do pijama o paletó de tantos invernos e quase empurrado por Aracy chegou à janela. Lá estava Alaíde Camargo, mulher faladeira, Antônio Dentinho, Maruê Lagartixa, tido como dos melhores no pau de sebo das quermesses, sem falar na fina flor da boemia local, espantosamente sóbria puxada pelos vivas de Chico Bolha. Era de se esperar que a glória chegasse, tantos foram os repasses dados a obra.

– Dois milhões, Dozinho, ouviu bem, dois miiiiiiiiiiiiilhões!

Os milhões na boca de Aracy se tornavam maiores ainda. Havia, finalmente, embarcado nos delírios dela! Sabia que chegaria o momento em que, sendo o inimigo mais forte, se renderia a ele – Corrumpunt bonos mores colloquia mala, latinou, capitulando.

E como lhe pareciam reais aquelas fisionomias conhecidas, ao pé de sua janela. Não seria também real o jacaré que morava embaixo da cama de Chico Bolha e que o recebia todas as madrugadas, na volta da esbórnia? Tudo é possível, tudo é plausível, tudo é real, até aquelas pétalas que o pequeno grupo lhe atirava.

Recuou três passos e imediatamente se arrependeu. Melhor estava encarando a platéia que as chispas verdes dos olhos pequeninos de Aracy. Claro, ela sempre soubera, o talento dele era insofismável (caprichava nas palavras, a bruaca); fizera bem em contrariar o pai e casar-se com ele (arrependia-se de não ter ouvido o sogro – é minha filha, mas é uma megera); finalmente a honra e a glória que ele merecia (até babava-se de tanto gosto, a vaca).

Alisou a gola do paletó e extraiu do fundo de sua inapetência as palavras jamais escandidas:

– Aracy, eu vou ao bar...

Esfregava-lhe na cara uma redondilha maior, vingança suprema de tantos anos em que ela, alexandrinamente, lhe atirara, certeira, seu nome de solteira – Aracy Aparecida Gomes da Cruz.

– Claro, vamos, sim, meu... Meu... Meu imortal!

Voltou à janela, magnânimo, acenou, deu as costas e desceu as escadas, casaco puído e calças de pijama (ora, já não havia saído nu da cintura pra baixo do quarto de Isolda Bela Puta em tempos de vou-tirar-você-deste-lugar?).

Recuperava um pedaço de si mesmo a cada passo vencido entre a casa e o bar. Atrás dele, a “turba ímpia e nojosa” e, no meio dela Aracy, com agilidade de menina, organizava uma ação entre amigos para a compra do fardão da Academia.

Mas como fardão, se nem candidato se lançara?

– Dozinho, quanto deve custar o fardão?

Nem mesmo a futura imortalidade o poupava da curiosidade de Aracy com relação a custos, fossem do que fossem.

Nos tempos de Sarney na Presidência da República, ela ganhara fama a perguntar sobre preços, imbuída da condição de “fiscal”... Ah, sim, Sarney, agora seu futuro companheiro dos chás de quinta-feira... E aumentaram-lhe os suores na lembrança dos chás. Refrescou-se com duas cervejas, em sucessivos brindes do Chico Bolha. Agora já não eram os chás quintafeirinos que o aqueciam, era a idéia do fardão de casimira.

– Levanta homem e larga de vagabundagem... O sol está quente lá fora e você enrolado nesse cobertor.

Dois olhos abertos, chegou-se à janela. A praça vazia pelo sol causticante abrigava o sono de Chico Bolha em um dos bancos do jardim.

– Aracy, eu vou ao bar.

III
GOZOSOS

É noite, novamente. Dozinho espia por entre a escuridão do bar o movimento da praça – Sexta-Feira da Paixão, logo a Procissão do Senhor Morto iria serpentear pelas ruas da cidade, as velas enroladas em celofane colorido teimando em espalhar espermacete nas delicadas mãos das Filhas de Maria; a matraca alternando o silêncio. O dia todo ali, refugiado, sem pronunciar palavra. Não ousava dizer mais nada depois da frase proferida pela manhã. Percebia agora a inutilidade de todas elas, todas as palavras careciam de sentido, tudo já estava escrito, tudo havia sido dito. Sem sequer abrir a boca tinha-lhe sido servida a bebida de sempre, garantira a mesma conversa recortada – o levantar de uma sobrancelha era o suficiente.

O dia todo ali, pregado àquela mesa. Não comia, não falava, não escrevia, não mijava – e isto era verdadeiramente espantoso, levando-se em conta as garrafas de cerveja que se acumulavam no canto da parede. Havia, finalmente, voltado à sua condição intra-uterina, boiava em meio ao burburinho, cenas fortuitas eram percebidas de relance, como o olhar pasmado de Chico Bolha ao testemunhar o apelo inédito e impensável de Aracy, pousando a mão em seu ombro – “Vamos para casa, Dozinho”. Deu de ombros para o companheiro, fixou-se no bater dos saltinhos baixos da mulher esquadrinhando com passos curtos não mais a volta para casa, mas para um caminho nunca dantes percorrido para perfilar-se a Procissão do Senhor Morto.

O dia todo ali e, subitamente, uma voz o arrancava de seu torpor. O trabalho de parto, iniciado pela manhã e entrado pela noite, agudizava-se. No púlpito improvisado em frente à Matriz, Verônica canta, rosto encoberto. Uma odalisca, essa Verônica – ensaiava uns passos da dança do ventre entre um “o Vós omnes” e outro, o véu escorrendo face abaixo.

Quebrantado pela lengalenga, levanta-se e segue o chamamento. "Eloì, Eloì, lema sabactàni?"

Entra na igreja, altar desnudo, santos cobertos apaixonadamente de roxo, o cheiro do jejum, do fracasso, da tristeza e do silêncio. Abstinência da palavra, porto da palavra, liturgia da palavra, das sete palavras.

Bruxuleava.

Da porta principal vê entrar o corpo do Senhor Morto, ladeado de todas as mulheres que fazem fila para lhe beijar os pés. Atrás da coluna espera que chegue a vez de Alaíde Camargo e precipita-se após o ósculo. Embriagado pelas velas e pelo silêncio, longamente “beija o beijo, não os pés”.

Não estivesse o Senhor Morto, nem mesmo ele escaparia do sobressalto diante dos repentinos arroubos de Dozinho, atracado, a pespegar beijos obscenos na faladeira Alaíde Camargo, que passou de flecha a alvo sob os olhares de mais de centena de fiéis e outro tanto de infiéis, todos agora testemunhas de uma paixão por tantos anos mantida em segredo.

Todos não. Menos Aracy, fulminada por colapso, morta na fila do Senhor Morto.

Dozinho, transfigurado, é tirado dos pés de Cristo sob o ronco de trovões que desciam dos céus, pragas e “te esconjuros” das beatas que a essa altura se acotovelavam na nave para testemunhar tamanha heresia. Instalara-se a balbúrdia na noite sacra, coisa nunca vista.

– Está tomado por satanás...

A frase passava de boca a boca, seguida de “cruz credos” e “benza Deus”, algumas já em aconselhamentos de que fosse coberta a cabeça de Cristo. E motivo havia pra isso.

Aos empurrões é retirado da Matriz. Lá fora esbarra nos vivas de Maruê Lagartixa e Chico Bolha já fora do banco da praça que lhe acolhia o sono.

Fechava-se assim o romance da vida de Dozinho, em gozos de embriaguez, naquela sexta-feira de dupla paixão – e morte – ampliada ainda mais por dona Afrodite Augusta Nogueira, mulher de Chico Bolha, que disse ter visto o Senhor Morto a piscar para Dozinho.