Thursday, January 11, 2007

FIM DE LINHA

Posted by Picasa Atira o paletó sobre a cadeira, dramatizando o gesto:
- Tô desempregado!A mulher, olhos fixos na novela, suspense no auge, mal ouve a informação, sequer desprega os olhos da tela, mas indaga, e agora? A pergunta tanto podendo se dirigir à novela quanto à perda do emprego.
- Xiiii, pai... A menina brinca com o piercing do umbigo, a perda do emprego do pai frita os sonhos mais recentes, viagens, roupinhas de grife.- É, pai, estamos ferrados... As palavras do filho se contrapondo ao pensamento. Sabe que o pai pouco acrescenta ao lar, a mãe, sim, é o sustento de todos, uma lutadora.Sim, ferrados estaríamos, pensa ela, se a manutenção de tudo e todos dependesse dele, marido preguiçoso e temperamental. Emprego nenhum lhe parece bom, este até que tinha durado muito, três meses, enquanto ela se rala na direção da escola, entre crianças voluntariosas e seus pretensiosos pais novos-ricos, e cuidando da casa, atendendo aos filhos, ouvindo os eternos queixumes do milongueiro desempregado.

Até quando? Até que ponto se pode esticar as fibras, até onde responsabilidade sua também, acomodando-se aos rumos da sua vida, contemporizando, como se os acontecimentos tivessem vontade própria e dirigissem seu destino, levando-a a deriva, parecendo viver entre cegos-surdos-mudos, alheios às dificuldades, a cada dia mais monossilábicos, desencontrados do saudável hábito do convívio familiar, marido capaz de dissertar horas com o vizinho, (outro vagabundo labioso), marido que tudo sabe sobre tudo e sobre todos, e em detalhes o escândalo político que tomou conta das atenções do país, discutindo com minúcias os episódios do dia anterior, erros e acertos dos envolvidos, em teoria, um salvador da Pátria...

Mas boca e ouvido fechados, quando se trata da inaptidão do filho para o trabalho, seu mui digno herdeiro, vinte e cinco anos, sem escola e sem emprego, dormindo com a chegada do sol e acordando com as primeiras estrelas, cantorzinho de banda mequetrefe, surfista domingueiro e, quando não em cima de uma prancha, navegando na Internet onde despeja o saber que raramente vai além de um “ki koisa, ein?”. E pensar quanto sonhara para ele um diploma de médico, quanto se privara pagando cursinhos caros e vestibulares longínquos... Dinheiro posto no lixo... E a filha cujos interesses parecem se resumir em tatuagens, piercings e namorados em seqüência... Que família! Sementes ruins, explica a mãe, consolando...Então aconteceu que, naquela noite, assistindo aos jornais, súbito, se deu conta de que apenas três grandes inteligências, para o bem ou para ou mal, ou ambos, (quem é que sabe?) vinham se revelando ao país estupefato, o satânico homenzinho careca, o homem que parecia estar em toda parte, envolvido em mil maquinações, falando em milhões como ele fala em moedas de dez centavos, um gênio, sem dúvida, vontade até de escrever aos jornais, propor fosse ele o presidente da República, em nome da competência, malgrado todas as maroteiras. O segundo, o político mais famoso do país, o grande líder que, em surdina, tinha colocado sob suas rédeas um país inteiro, nunca deixando rastros, negando qualquer ilícito, tudo com cara de homem integro, inocente... E o terceiro, o político cantor, o homem que tudo sabe, nenhuma parede por mais sólida, nenhum cofre por mais seguro, lhe escondem qualquer segredo, nada escapa ao seu olhar penetrante, e ainda um grande cantor, um “mis-en-scene” como raramente se tinha visto, artista nato, o país inteiro pendurado nas suas palavras, ora candentes, ora suaves, mas sempre peremptórias... Que trio... Ah! Era com gente assim que gostaria de lidar, sair da mesmice da sua vida, dar uma guinada, fazer baixar o olhar desafiador da mulher, dar aos filhos a realização dos desejos... E por que não?O telefone toca...Na linha, o companheiro de muitas parlapatices dos tempos de sindicato. Comentou sobre seu alinhamento na legião dos dez milhões de desempregados e das nuvens negras que ameaçavam sua família. Se havia parte de verdade, esta era a de que mais pesaria ainda para a mulher.Seguiu-se a convocação para que fosse para a capital, um verdadeiro eldorado.E por lá aportou.Asas brancas transportando sonhos de igualdade do arquiteto genial.Coriolano o esperava no desembarque, sorriso largo:- Grande companheiro!Cumprimentos efusivos de parte a parte e seguiram para o apartamento da Super Quadra Sul, onde já o aguardavam a mulher do amigo e os filhos do casal.Já estava tudo acertado, garantiu o amigo que transitava com grande desenvoltura nas ante-salas palacianas. Iria para o gabinete do deputado Hermenegildo de Almeida, como um aspone a mais até que firmasse conceito.
- Mãe corre aqui. Pai tá na televisão!
O grito histérico da filha fez com que se antecipasse aos fatos, imaginando-o crivado de balas, tombado pela violência a cada dia ocupando mais espaço na mídia. Mas o que viu foi Hermógenes ladeado por dois policiais federais, algemado, entrando num camburão.Corte na cena e reaparece o pilantra tentando esconder o rosto, enquanto a voz da locutora chega pastosa aos ouvidos da família Penteado:

- Preso hoje em Brasília Hermógenes Penteado, um dos integrantes da máfia chefiada pelo funcionário Coriolano da Silva e principal responsável pelo superfaturamento na compra de quinhentas geladeiras que seriam distribuídas aos congressistas. Ex-assessor do gabinete do deputado Hermenegildo de Almeida, foi indicado para chefiar o Departamento de Manutenção da Câmara dos Deputados e era quem ficara encarregado das licitações por indicação do Sr. Coriolano da Silva.- Que incompetente! Foi o único adjetivo que a mulher encontrou.
- Tinha mesmo que ser preso esse pulha envolvido com geladeiras, pois pela vida só fez entrar em fria. Sempre desconfiei do Coriolano, desde os tempos do sindicato, quando vivia a tripa forra as custas das contribuições dos operários.
- Pára mãe! Não esqueça que ele é seu marido e meu pai...
- Seu pai. Meu marido deixou de ser a partir de agora. Vou procurar advogado e entrar com ação de divórcio. E mais essa agora... Não bastassem anos e anos eu ralando em salas de aula para garantir o supermercado e agora ter que aturar a pecha de mulher desse Brastemp de uma figa. Em que gelada me meti...
CPI e lá está a cara cínica a negar tudo.
- Atende aí, gente. Será que nessa casa nem para atender telefone vocês servem...
Do outro lado da linha a voz sussurrante já agora do ex-marido...
- Alô... Quem? Ué, saiu da cadeia? Melhor que tivesse ficado de vez por lá... Pelo menos garantiria casa e comida de graça, porque aqui nem pensar, pois não vou sustentar vagabundo corrupto... Como é que é, habeas corpus? Esse país não tem jeito mesmo...
- Amor...
- Amor é o cacete. Vai dizendo logo a que veio... Se for dinheiro, tire seu cavalinho da chuva... No meu agora você não põe a mão em nem mais um níquel... O que? Festejar a liberdade? Só me faltava essa... Só falta ser com recepcionistas e num hotel de Brasília...
Bate o telefone, dirigindo-se a filha:
- Vá a gente acreditar na Justiça. Só a de Deus e ainda assim temos que morrer para conferir. Que vergonha, Senhor, que vergonha! Nada disso... Não tenho que ter piedade coisa nenhuma. Piedade, sim, dos milhões que minguam de fome, das centenas de milhares de crianças cujas barrigas só se enchem com verminose. Sepultaram de vez a ética sete palmos abaixo das fundações do Congresso... E essa camarilha a fazer o povo acreditar que chegavam para mudar o Brasil.
- João Alfredo, aonde você vai?
O filho, sem que mesmo lhe dirigisse um olhar, anuncia a ida a Brasília, onde, a pedido e expensas do pai, iria com a banda animar a festa da liberdade e – quem sabe? – fechar contrato para participar de comícios do partido governista.E arremata, com jeito debochado:
- Mãe, estamos em campanha. Pai vai ser lançado candidato a deputado pelo Distrito Federal. Processo... Que processo? Vem pra Caixa você também...Vem!

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