Soturno, sempre desconfiei de suas intenções. Menino, ainda, vestiam-no com casacos pretos, que combinavam com profundas olheiras e as pesadas botas que o obrigavam a um andar arrastado, olhando, vez por outra, para trás, como cão enxotado. Arredio às brincadeiras de rua, me parecia uma dessas figuras a quem a vida não concede uma saída, aprisionando-o dentro de si mesmo. Na mão, amarrotadas folhas de papel almaço, que dizia ser o suporte para o que mais gostava de fazer: escrever.
Nunca ninguém vira nenhum dos seus escritos. Apenas suposições dos que o encontravam desatento, com um cotoco de lápis, a rabiscar, longe dos gritos das crianças que, iguais a ele, tanto se diferenciavam pela alegria. Nem mesmo seu nome sabiam. Por todos era tratado como “o escritor”, único momento em que o brilho dos olhos manifestava seu agrado.
Aguçava-me a curiosidade maior que a mangueira debaixo da qual se sentava no quintal de um velho casarão.
Voltei a encontrá-lo quando o casaco e as botas eram bem maiores. O casarão e a mangueira haviam dado lugar a um prédio em que empilhavam novas famílias. Meu reconhecimento se fez pelas encardidas folhas de papel em suas mãos. Que idéias teria posto nelas? E aguçado pela já madura curiosidade, me aproximei.
Assustado, olhou-me de soslaio e apertou o chumaço de papel com o medo natural de quem vive numa cidade ameaçado pela violência onde o canto dos pássaros havia sido substituído pelo sibilo das armas de fogo.
Tranqüilizei-o com os ares de velho amigo e mansamente falei de uma infância que vivia na minha memória: dos ipês lilás e amarelos que coloriam a rua sem saída perfumada pelos jasmins; do café servido com bolo de fubá e aipim, nos fins de tarde, entre papos acalorados dos homens sob o olhar adocicado das mulheres. Falei, ainda, de Helena, para quem ele nunca dirigira um olhar. Helena tão cobiçada por todos nós... E aventurei-me:
- Diga-me, amigo, o que de tão importante escrevinhou nesses papéis, que sempre os teve protegidos dos olhares de todos?
Percebi o tremor de suas mãos que se seguiu à minha pergunta.
Aterrorizado, levantou-se e desapareceu ágil como nunca fora. Pensei nas pesadas botas...Foram muitos os anos e o reencontrei, cabelos brancos, corpo arqueado pelo peso dos seus próprios desencontros. Dirigiu-se a mim em passos arrastados sem que eu buscasse a aproximação.
Não fossem os papéis, não o reconheceria. Agora, tinha-os bem mais encardidos, mas não menos causa de sua inquietação e da minha curiosidade por tantos anos alimentada. Temendo afugentá-lo, pensava de como na abordagem viesse a desvendar o mistério dos seus escritos.Surpreendeu-me:
– Sempre vi nos que viviam próximos a mim a intenção criminosa de me tomarem os papéis. Por toda a vida eu os protegi. Cuidei deles como zelei pela minha alma. Neles está a minha própria razão de viver.
Como um meliante das letras, não resisti à tentação de roubá-los, cuidando de antes policiar se alguém me observava.
Arranquei de suas trêmulas mãos tão preciosos papéis, pois assim me pareciam. E num fôlego corri até a rua sem saída.
E lá estavam o casarão, a mangueira e o menino.
Deixei junto a ele os papéis em branco que roubara...
No comments:
Post a Comment