Vê o mar em frente... E na linha do horizonte, o céu se fazendo mar, que brancas gaivotas sobrevoam... Vôos de liberdade...
Fixa o olhar nos braços do Cristo Redentor...
Da rua, chegam as vozes das crianças inalcançáveis em seus jogos infantis. Isolada pelo muro do preconceito, a menina excepcional se perde entre as vozes confusas do rádio sempre ligado, prisioneira da incompreensão familiar, o mundo só entrando pelas frestas da janela, de onde partem seus gritos: aúa, aúa, aúa...
Chamavam-na de “Aúa”.Aúa é o grito-símbolo da minha infância.“Aúa” é a rua sem saída, terminando nos muros da mansão do banqueiro do jogo de bicho...
“Aúa” é o apelo da liberdade negada, o passeio na pracinha, o mundo lá fora transbordando de sensações... “Aúa” é o cheiro recendente do bolo de fubá, o perfume dos jasmineiros, as vozes infantis nas brincadeiras... “Aúa” é o colorido dos flamboyants que sombreavam as tardes quentes da minha infância... “Aúa” era a curiosidade, o medo dos gritos da menina saídos das frestas da janela, pegando-me desprevenido, quando, fugindo da vigilância da ama, caminhava sozinho até os limites da tinturaria.
Nunca vi “Aúa”. A imagem que guardo é de felizes meninas pulando “amarelinha” ou, cabelos ao vento, indo e vindo na calçada em suas bicicletas. Aúa nunca estava entre elas. “Aúa” era um som... O grito do inconformismo.
Sem “Tarik” e “Pipoca”, o casal de fox-terrier quesaudava meu pai na volta do trabalho, deixei a rua sem saída, mudando algumas quadras adiante para o casarão de minha avó materna, cega e bondosa. O casarão já não vivia o seu apogeu, com as paredes aqui e ali descascadas. O casarão onde, na biblioteca, o tio esquizofrênico acumulava em grande desordem volumes e traças. Lá, eu acordava com o cantar dos pássaros e dormia ouvindo o pio da coruja, o agitar do vento nos salgueiros, o eco de passos no corredor.
Era um tempo mágico, impregnado pelo aroma da bananada feita no tacho de cobre no fundo do quintal sob o comando da avó acertando pelo olfato o ponto.
Era um tempo de histórias e fantasmas. Das fugas de Honorina, o bicho-preguiça, para o quintal do vizinho “Cuco”, que aparecia na janela gritando que fossemos buscar o pobre animal inofensivo para que voltasse ao ipê do quintal, onde me aboletava num dos galhos para ver através da janela do banheiro as mulheres se banhando.
E era tempo de colher frutas no pomar do casarão, disputando com pardais, rolinhas e morcegos em vôos arrojados, as mangas, carambolas, abios, sapotis, ameixas, abacates... Tempo de brincadeiras, de quedas das árvores, algumas terminando por levar-me ao Pronto Socorro pelas mãos aflitas de minha mãe.
Alfabetizado muito novo no ginásio fundado do meu avô, lia os jornais, atendo-me ao diário de “Giselle, a espiã nua que abalou Paris”, publicado num vespertino.Tempo das manchetes de uma guerra só sentida pelo racionamento do pão de tostão da “Padaria Colombo”, uma homenagem equivocada do “seu” Joaquim ao descobridor do Brasil.
Tempo ainda da mansão do banqueiro tornada centro de recrutamento da Força Expedicionária Brasileira. E de conversa de adultos sobre os valores nutritivos das batatas que alimentavam famílias inteiras durante a guerra, a justificar a sua presença sempre à mesa, fossem fritas, cozidas ou assadas. Tempo dos meus pesadelos com os ratos que infestavam o casarão, influenciado pelas narrativas de que serviam de alimento aos guerreiros famintos.
Estranho mundo que fazia guerras pela paz, formando novos impérios. E despersonalizando povos milenares em suas tradições.
Crescendo, fui ganhando o mundo negado a “Aúa”.
Pelas mãos de Orumba Paracatu Mandina, neta de princesa escrava e “filha de criação” do meu avô para serviços domésticos, conheci a espuma do mar de Copacabana que iria curar-me das crises de asma. Orumba de canto triste, que ganhara a liberdade pela Lei do Ventre Livre, vindo a morrer de nó nas tripas depois de sofrida prisão de ventre.
- Ô, menino, vai comprar manteiga, lá na Travessa do Ouvidor...
A ordem partia de minha avó ou de uma das tias e trazia a emoção da longa viagem no sacolejar do bonde, com baldeações no Tabuleiro da Baiana. O troco virava suco na “Laranjada Americana” ou caldo de cana no Hotel Avenida.
No Largo de São Francisco, buscava com meus olhos de criança o clarão do incêndio do Park Royal em que tantos haviam morrido, aprisionados pelas portas trancadas, num inferno de fogo e de celulóide dos brinquedos que traziam sorrisos às crianças. Lá estava apenas o espaço vazio ao lado da Igreja de São Francisco. O santo me parecia descuidado pela quantidade de fiéis mortos.A vida se alongava...
Sepultos, agora, os trilhos, tirados da paisagem carioca os bondes lotados dos alegres foliões nos carnavais de confetes e serpentinas.
E enquanto os gritos de “Aua” ainda ecoavam, no sacolejar da História, a Ciência avançava para o Bem e para o Mal, a penicilina curava milhares de vidas, que a era atômica aniquilava em Hiroshima e Nagasaki. Sabin com sua vacina nos livrava de muletas e cadeiras de rodas as novas gerações, mas que voltavam a ser ocupadas pela velocidade imprimida aos veículos por um mundo que queriam mais moderno ou das balas de armas cada vez mais sofisticadas e mutiladoras.E no casarão, os gritos dramáticos do tio esquizofrênico. Que não o internassem no sanatório onde choques elétricos o devolviam mais gordo e manso dos surtos do seu mal.
Médico homeopata era o tio quem curava os moradores do casarão das doenças, com o “Alium Sativum” ou o “Nosvômica”, de sua farmacopéia mantida numa caixa com o título de doutor que fez por merecer.
Bengala e guia da minha avó, era eu quem, trôpego de sono, a levava á missa das cinco, para pedir perdão pelos pecados que não tinha. Era o meu calvário na direção da cruz da Matriz, cumprido religiosamente todos os domingos e que me dava o direito de ser o guardião da chave da gaveta da escrivaninha dos mil réis e do guarda-casaca onde, entre peças do seu enxoval, estava a latinha de caramelos com que ela premiava os bons feitos dos netos.
“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...”
Muitas eram às vezes em que, convocado, sentava ao seu lado para a Hora da Ave Maria, na voz de Julio Louzada. Não seguia as rezas, mas ficava aguardando a “Ave Maria” de Gounod que encerrava o programa.
“... bendita sois vós...”.E nem poderia deixar de ser, pensava.As orações eram agora dirigidas pelo padre, enquanto os círios queimavam e o espermacete escorria como lágrimas. No salão forrado de azul com flores de Lys douradas, o caixão com vovó vestida com o hábito da Irmandade do Carmo a que pertencia. Uma grande cruz de prata reluzia à sua cabeceira. Na parede, o par de quadros retratando meus bisavós cujos olhares pareciam acompanhar as reverências à filha morta. Em suas mãos, o terço de ametistas trazido de Roma por um dos filhos, junto com a absolvição plenária concedida pelo Papa Pio XII, conforme documento emoldurado em seu quarto. A decisão de enterrá-la com o terço foi tomada por eu ter dito ser esta uma de sua vontades. Mesmo não sendo verdade, vovó merecia.
Lá fora, o cocho de penachos negros e a longa fila de carros aguardavam o fim dos trabalhos. Desci pela última vez as escadarias de mármore do casarão.
Anos se passaram...
Retornei à rua sem saída e ao casarão. Queria de volta a minha alegria infantil, o cheiro da bananada, o sabor da manga madura apanhada no pé... Fui em busca do meu sorriso espontâneo, minhas solidões, meus silêncios e minhas lágrimas... Meus medos inocentes das sombras projetadas pela luz da candeia...Por onde andariam os fantasmas escondidos nos cantos escuros de tábuas que gemiam à noite, o pio da coruja, o ranger das portas, o farfalhar do salgueiro, os passos ouvidos no corredor?Que retornassem com meus sonhos, dúvidas e desatinos, querências que me foram arrancadas sem consulta... E a menina de trança que ria do meu amor primeiro...Que fora feito da espera dos cometas que não vi, das estrelas que fiz minhas, dos horizontes azuis aonde não cheguei?Queria de volta as crenças em promessas não cumpridas, esperanças e devaneios... E o grito de liberdade de “Aúa”.
Queria o futuro que meu passado prometeu.
Só encontrei escombros...
1 comment:
No percurso do Tempo Infinito cheguei ao "Maestro", mas fiquei em "Aúa".Mais no silêncio que nos gritos.Esses "trabalhos de memória" retirados da experiência própria ou dos outros tornam-se, de alguma forma, experiência nossa.
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