E Marta o vislumbra entre as brumas da paisagem fantástica, pensamentos e sentimentos chegando aos dela, uma claridade mental que se interprojeta, ele e ela, ela e ele... um integrar-se em que nada se esconde...
Mas Carlos tem os olhos fixos no céu, recolhe em delírio as estrelas, coloca-as nas caixas de cristal, enlaçadas por fitas de arco-íris e lhe oferece o presente sideral. Porque é Natal...
Ouvem-se murmúrios. Há uma estranha música, lentamente transformada em gemidos delirantes. Luzes explodem na rua em guirlandas coloridas. E o orvalho das lágrimas escorre no rosto sofrido. O doloroso contraste... A alegria inalcançável chegando pela janela entreaberta... Distante, cintila a árvore de Natal... Ondas de vultos brancos abrem-lhe o sorriso tímido num rosto de neve. Trenós de prata cruzam a porta. O tilintar dos cristais mistura-se aos guizos das renas, ao coral dos anjos, às preces longínquas. Uma a uma, distribui as caixas de cristal aos que chegam e o cercam, ajoelhados em oração.
Pela janela, o sopro frio da madrugada ainda se faz mais frio. Ela e ele distanciam-se, caminhando entre as brumas, na busca da estrela-guia...
Agora Carlos dança, são volteios cadenciados. Cantos e ritmos pagãos enchem a sala. Cercado de atenções, lá está o homem sedutor que ele é agora, o dançarino sensual... Marta busca seus braços, o calor do corpo que busca. Mas Marta está agora sozinha no jardim... A chuva cai fina nessa noite sem estrelas... É preciso cumprir o ritual, tirar a moeda do seio, concentrar-se no pedido, jogá-la com as flores ao mar... Mas não há mares nem iemanjás... Apenas um coração... Porque é Natal...
E de repente, está de volta ao salão... Bocas embriagadas em delírios gritam alucinadamente, despertando cristos meninos das manjedouras das calçadas sob um céu riscado por fogos de artifício... E novamente Carlos, um vulto branco se esvaindo qual fumaça ao vento... Tenta segurar as fugidias vestes brancas... esbarra nos convidados... a dor da separação... as lágrimas contidas... toques estridentes...
E Marta acorda, confusa, telefone tocando, “feliz natal”, a voz da amiga querida, cumprimentando... Tão belo e estranho o sonho... Mas tem que levantar, tanta coisa a fazer, É Natal, sim, um infeliz Natal, Carlos a deixará, assim lhe fora dito na véspera... Uma viagem sem volta. Um oceano se estenderá entre eles... A distância infinita do adeus... Mas há outra distância, a dos sentimentos, a distância entre o querer e o poder, que cruelmente os separa... Sem piedade ou perdão pelos laços dos que um dia se uniram, dos que se quiseram bem, dos que um dia juraram fidelidade, quando noivos inconscientes das imprevisíveis paixões... das tristezas com que se tecem as renúncias... Da covardia dos que se acomodam e fazem da vida a rotina do meio termo banal, sem o encanto dos extremos, Ah, o mundo inconfessado dos desejos reprimidos, os sonhos denunciadores, uma supra realidade onírica do amor eterno e impossível...
Pensativa, Marta busca-se no grande espelho. Uma mulher sofrida, frágil, ainda bonita. Apenas o vulto branco na penumbra do salão vazio. Passos arrastados em direção à janela de onde chegam os sons da vida.
Atira-se anjo no espaço... explode seus sonhos na calçada...
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