Olhos arregalados, em pé na calçada, eu acompanhava aquele entra e sai de mulheres e homens em trajes escuros.
Levado pela curiosidade, entrei na casa. De imediato fui abraçado pela gorda senhora, em prantos. Temi por alguns momentos que também eu tivesse que acompanhá-los em suas últimas moradas. Afinal, nem tão íntimo era assim. Muito pelo contrário. Muitas vezes era corrido por minhas preferências pela cajazeira do quintal dos não muitos simpáticos vizinhos. Nunca me passara pela cabeça que D. Maria pudesse entrar com mais alguém num caixão de defunto. Fosse retangular e largo, até admitiria, pois assim via as sardinhas em lata. Mas D. Maria?
Ainda maior o absurdo da desproporcionalidade dos corpos. Seu Antônio, magrinho, magreza que mais ainda se acentuava junto à volumosa vizinha da casa assobradada em frente à nossa.
Auxiliada por mais três carpideiras, D. Maria fazia parte daquele quadrilátero de prantos que me atordoava e sobressaltava-me pela afirmativa de que homem tão bom como aquele não existia na face da terra e que Deus o teria sob sua guarda. Como "tão bom"? Afinal, aos meus olhos e pernas, nem tão bom ele era, pois não foram poucas as vezes que me correra a vassouradas ou o vira atracado com domésticas nas imediações de nossas casas.
Perdia-me em pensamentos, alentado pelo café de bom aroma e pelos bolinhos de milho que passavam em bandejas de louça floridas. O velório transcorria com os elementos necessários. O forte cheiro do espermacete queimado misturava-se ao aroma das flores, nauseando-me. Mas dali só me afastaria depois de certificar-me do milagre de colocarem D. Maria no caixão.
Razão eu tinha, pois meu amigo Beto me contara o velório da avó dele. Por falta de dinheiro, compraram “caixão de anjo” e depois de muito empurra daqui e empurra de lá, com a defunta comprimida, aparafusaram a tampa. Regada à boa cachaça, a noite ia alta quando uma vizinha curiosa, aproveitando-se do descuido dos parentes, afrouxou os parafusos na intenção de ver o rosto da defunta. A tampa impulsionada por pernas e mãos da velha comprimida caiu no meio do barraco, despertando alguns e acelerando a corrida favela abaixo.
Fascinava-me a idéia de como fariam isso com D. Maria. Fazia medições e pensava nos cajás já não mais policiados pelo casal. Olhei para o crucifixo à cabeceira do seu Antônio e cumpri a reza de que bem fossem eles acomodados, ainda que confessadamente descrente. Mas se multiplicados foram os pães, como me vinha sendo dito nas aulas de catecismo, por que não seriam alguns centímetros do caixão multiplicados?
– Eu quero ir com ele! Deixem-me ir! Ponham-me no caixão com ele!
Definitivamente, D. Maria tinha presença de palco e estava decidida a não deixar o velório cair na monotonia. Se bem que a platéia já ansiava por variações do mote, a julgar pela troca de olhares e o silêncio que permitia ouvir as gargalhadas da cozinha – não há lei que proíba contação de piada em velório.
– Talvez se virassem Seu Antônio de lado...
Apenas murmurei, mas a idéia ganhou vida própria e correu por toda a sala. Claro, virando-o de lado e encaixando a viúva em sentido contrário... E a palavra "encaixar" ganhou sentido e materialidade: D. Maria seria encaixada, era só uma questão de operacionalizar a decisão.
O velório se animou. Havia sido encontrado o verdadeiro sentido daquela reunião, já que Seu Antônio, por mais que defunto fosse – e todos sabemos que os defuntos são bons, a vida é que os corrompe –, não era merecedor de tantas horas perdidas em um sábado de sol, nem dos balaios de pãezinhos de leite, os bolos de fubá, os biscoitinhos de maisena e os bules de café.
Bem verdade que alguns levantaram questões morais e éticas, mas o desejo explícito da viúva, o livre-arbítrio, a eutanásia e os antigos costumes hindus acabaram por esmorecer os pruridos. D. Maria seria encaixada, embora ela própria já não tivesse mais tanta certeza da verdade de sua fala – que idéia mais infeliz essa de repetir as palavras do folhetim – mas era mulher de não voltar atrás no dito. Encaixar-se-ia, se necessário fosse, nem que fosse a última coisa que fizesse nesta vida.
Ato contínuo desceram o caixão ao chão e as carpideiras tiveram algum trabalho no rearranjo das velas e do crucifixo – afinal, aquilo ainda era um velório. Um vento súbito inflou as cortinas e o cheiro do cajá-manga inundou a sala. Sentei-me nas tábuas do assoalho, evitando o olhar da viúva e sabendo que aquilo seria ainda melhor que lhe roubar os frutos. Seu Salatiel, o boticário, segurou os ombros do defunto e convocou com um olhar um voluntário para os pés. D. Arminda foi aos pés e realizaram a operação, com algum esforço. Digna, porém um tanto relutante, D. Maria encaixou-se, lado a lado.
Orgulhava-me ter sido o autor da idéia de como acomodá-los. Timidamente empurrei um pedaço de bunda de D. Maria que insistia em não se recolher ao exíguo espaço. E mais ajuda não prestaria, pois bem sabia do peso acrescido ao esquife. Não só eu, mas Juca Stapanato, italiano dos mais fortes das redondezas, que ao pressentir que seria convocado para repor o caixão na mesa, afastou-se para a varanda, mesmo diante do olhar crítico dos presentes.
Iniciaram-se as rezas, já agora no plural, pois dois seriam os defuntos – que um era de fato e por direito, e outro de corpo e alma presentes, a ter-se entre as pernas do primeiro, em suspiros. Era espetáculo de não se perder o que viria depois: a colocação da tampa. Deixei sobre a cadeira o bolo de aipim e me posicionei no melhor ângulo que me permitisse ver a compressão da volumosa senhora, mantendo uma distância que me resguardasse dos gases que diziam expelidos por recém-defuntos.
Este conto contém 3 finais diferentes por sugestão da co-autora Teresa Mello.
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