Tuesday, February 27, 2007

O HORÓSCOPO

Seu António, homem de pouco saco e muita farinha, conforme se dizia à boca pequena, no bairro, é caladão, tem hábitos severos e goza de respeito temeroso em toda a vizinhança. Pai de duas filhas que com homens só viveriam se casadas de papel passado no cartório e na igreja, segundo vive repetindo. Jamais permite que Aurora, sua mulher, se ponha à janela, nem mesmo quando as duas vizinhas, Margarida e Hortênsia, flores de reputação duvidosa na sua avaliação explodem em imprecações nas brigas domésticas.

- Lugar de mulher é na cozinha...

E é onde dona Aurora se enfia com os primeiros raios do sol, em meio aos temperos, cujos aromas chegam à sala de jantar do sobrado do doutor Adamastor, que doutor não é, título emprestado ao homem pela elegância no trajar e trejeitos que dão o que falar aos vizinhos.

Seu António, mesmo rico, só aceita comer o que a mulher prepara. Uma escrava submetida às ordens do Senhor, pensam as filhas, também elas submissas às exigências medievais do pai.

Com a chegada do carnaval, Aurora, mulher de grande fé religiosa, vai para um retiro. Apesar dos protestos, leva as duas filhas, que só acabam cedendo por saber que rapazes da congregação dos moços também lá estariam.

Um dia, na leitura do jornal, Seu António, que jamais tinha lido um horóscopo por desacreditar deles, decide dar uma espiada e lê: “Momentos divertidos virão, novas amizades lhe trarão infindáveis prazeres. Use roupas coloridas e muitos dourados...”.

Pensa em Etelvina, mulatinha sestrosa, candidata a Rainha da Bateria do Bloco Unidos do Cabuçu, em escalada para chegar a Marquês de Sapucaí num futuro próximo que se prenuncia pelas atenções do bicheiro André Brilhante.

Recolhe no armário uma camisa roxa desprezada, a calça vermelha presenteada pelas filhas e jamais usada, a faixa dourada usada pela mulher com um grande laçarote na festa de formatura da filha mais velha e. Pronto! Joga tudo numa sacola e segue para o Catumbi, bairro vizinho onde mora o amigo da juventude Oriovaldo, solteirão e farrista incorrigível. Lá se dará a transformação e surgirá o Antônio horoscopiano para cumprir os desígnios dos astros.
Olha-se no espelho e não se reconhece. A princípio, sente-se ridículo, mas a imagem que vê de certa forma o agrada, pois é ela que romperá os grilhões de uma vida que muitos apontavam como careta. Convidado por Oriolvaldo, parte para o Bar do Juca, para umas cervejotas antes do que se promete uma esbórnea carnavalesca.

E acontece que na caminhada ao bar, Seu António cruza com a mulher de saia rendada, grandes argolas nas orelhas, rugas cruzando a face. Uma cigana! Que insiste em ler sua “sorte”, pouco lhe custaria. Constrangido, tenta se esquivar. Detesta ciganos, julgando-os todos vagabundos e ladrões. A mulher implora... Oriovaldo apela:

- O António, deixe que a mulher leia sua mão. A cigana precisa comer...
Desvia-se dela, se apressa, ainda ouvindo, a mulher que o persegue repetindo,

- Sua sorte vai mudar, miserável...

As palavras ainda ressoam... Entra no bar... Precisa beber alguma coisa mais forte que uma simples cerveja... Súbito, o bar se enche de mascarados coloridos como ele e íntimos de Oriovaldo. Fica confuso com a atração que o grupo exerce sobre ele. Nem saberia dizer como participa agora do troca-troca geral e anônimo no entra e sai do banheiro... Mas a sensação é de prazer jamais sentido... Prazer intenso, prazer só agora descoberto, prazer como nunca antes lhe fora dado sentir...

Volta à mulher com as filhas e com elas, a rotina da casa. Não a dele. Percebe agora quanto se vestia mal, sequer tinha perfumes. E se dá conta do vizinho, Dr Adamastor, sua elegância, sempre cheiroso, homem requintado... Tem sonhos eróticos onde o vulto do doutor se confunde com tantos outros invisíveis dos troca-trocas da noite de carnaval. Revira-se na cama, é intenso por demais o desejo, desejo que é dor, dor que é desejo...

Não se intimida e aproxima-se de Adamastor. Aconselha-se sobre melhores flagrâncias, alfaiates, nomes de estilistas, chegando às minúcias dos anéis. Aurora surpreende-se a cada entrada com sacola estampando nome de grifes famosas. Pensa em Etelvina tão citada pelo marido e teme pela solidez de seus mais de 20 anos de casamento.

A vida segue e a vizinhança tem agora dois doutores. Gentis e elegantes cavalheiros, amigos inseparáveis nas idas à academia. Contratam o belo jovem Alfredo como personal training. Agora é cuidar da alma, pois o corpo está entregue a Alfredo, que se divide entre um e outro.

* * *

O médico plantonista atende:

- Que outros sintomas acusa? Terei que pedir vários exames para um diagnóstico preciso.

Envergonha-se em ter que falar de sua vida sexual.

O médico constata o desespero do homem curvado pela dor, pálido, suando de dar dó, os olhos baixos, ar de constrangimento, como se desculpando por estar ali...

Leva-o à sala de exames, chama a enfermeira. Antes que chegasse, ele implora:

-Por favor, doutor, pelo amor que tem a seus filhos, só o senhor...

Ele não tem filhos, sequer é casado, mas atende ao pedido, dispensa qualquer ajuda, examina o paciente e encerra a consulta com a solicitação de um exame completo de sangue. Nenhuma pergunta mais. Preenche a ficha, escreve algo de modo a não comprometer o paciente.

Chega o resultado do exame: é portador do vírus HIV.

Seu António está confuso.

- Fui sempre um homem severo demais com as fraquezas humanas, doutor. Deus me puniu. Ou me atingiu a maldição de uma cigana. Não sei dizer. Procurei ser sempre digno e honesto, doutor. Gosto da minha mulher, adoro minhas filhas... Jamais suspeitei de qualquer tendência homossexual. Creio que ninguém da família também. Peço-lhe que seja discreto. Assumo sozinho. Sou um homem rico, doutor. Precisando de alguma ajuda, conte comigo. Não interprete como corrupção. Gratidão apenas...

Seu António pensa nos mascarados, em Adamastor e Alfredo. Qual ou quais? Como alertar os dois últimos do mal que começa a consumi-lo? Só então lhe ocorre a frase final do horóscopo: “mas não exagere nos seus prazeres durante o carnaval. Use a camisinha”.

Saturday, January 13, 2007

O ENTERRO

Ponham-me no caixão com ele!
Olhos arregalados, em pé na calçada, eu acompanhava aquele entra e sai de mulheres e homens em trajes escuros.
Levado pela curiosidade, entrei na casa. De imediato fui abraçado pela gorda senhora, em prantos. Temi por alguns momentos que também eu tivesse que acompanhá-los em suas últimas moradas. Afinal, nem tão íntimo era assim. Muito pelo contrário. Muitas vezes era corrido por minhas preferências pela cajazeira do quintal dos não muitos simpáticos vizinhos. Nunca me passara pela cabeça que D. Maria pudesse entrar com mais alguém num caixão de defunto. Fosse retangular e largo, até admitiria, pois assim via as sardinhas em lata. Mas D. Maria?
Ainda maior o absurdo da desproporcionalidade dos corpos. Seu Antônio, magrinho, magreza que mais ainda se acentuava junto à volumosa vizinha da casa assobradada em frente à nossa.
Auxiliada por mais três carpideiras, D. Maria fazia parte daquele quadrilátero de prantos que me atordoava e sobressaltava-me pela afirmativa de que homem tão bom como aquele não existia na face da terra e que Deus o teria sob sua guarda. Como "tão bom"? Afinal, aos meus olhos e pernas, nem tão bom ele era, pois não foram poucas as vezes que me correra a vassouradas ou o vira atracado com domésticas nas imediações de nossas casas.
Perdia-me em pensamentos, alentado pelo café de bom aroma e pelos bolinhos de milho que passavam em bandejas de louça floridas. O velório transcorria com os elementos necessários. O forte cheiro do espermacete queimado misturava-se ao aroma das flores, nauseando-me. Mas dali só me afastaria depois de certificar-me do milagre de colocarem D. Maria no caixão.
Razão eu tinha, pois meu amigo Beto me contara o velório da avó dele. Por falta de dinheiro, compraram “caixão de anjo” e depois de muito empurra daqui e empurra de lá, com a defunta comprimida, aparafusaram a tampa. Regada à boa cachaça, a noite ia alta quando uma vizinha curiosa, aproveitando-se do descuido dos parentes, afrouxou os parafusos na intenção de ver o rosto da defunta. A tampa impulsionada por pernas e mãos da velha comprimida caiu no meio do barraco, despertando alguns e acelerando a corrida favela abaixo.
Fascinava-me a idéia de como fariam isso com D. Maria. Fazia medições e pensava nos cajás já não mais policiados pelo casal. Olhei para o crucifixo à cabeceira do seu Antônio e cumpri a reza de que bem fossem eles acomodados, ainda que confessadamente descrente. Mas se multiplicados foram os pães, como me vinha sendo dito nas aulas de catecismo, por que não seriam alguns centímetros do caixão multiplicados?
– Eu quero ir com ele! Deixem-me ir! Ponham-me no caixão com ele!
Definitivamente, D. Maria tinha presença de palco e estava decidida a não deixar o velório cair na monotonia. Se bem que a platéia já ansiava por variações do mote, a julgar pela troca de olhares e o silêncio que permitia ouvir as gargalhadas da cozinha – não há lei que proíba contação de piada em velório.
– Talvez se virassem Seu Antônio de lado...
Apenas murmurei, mas a idéia ganhou vida própria e correu por toda a sala. Claro, virando-o de lado e encaixando a viúva em sentido contrário... E a palavra "encaixar" ganhou sentido e materialidade: D. Maria seria encaixada, era só uma questão de operacionalizar a decisão.
O velório se animou. Havia sido encontrado o verdadeiro sentido daquela reunião, já que Seu Antônio, por mais que defunto fosse – e todos sabemos que os defuntos são bons, a vida é que os corrompe –, não era merecedor de tantas horas perdidas em um sábado de sol, nem dos balaios de pãezinhos de leite, os bolos de fubá, os biscoitinhos de maisena e os bules de café.
Bem verdade que alguns levantaram questões morais e éticas, mas o desejo explícito da viúva, o livre-arbítrio, a eutanásia e os antigos costumes hindus acabaram por esmorecer os pruridos. D. Maria seria encaixada, embora ela própria já não tivesse mais tanta certeza da verdade de sua fala – que idéia mais infeliz essa de repetir as palavras do folhetim – mas era mulher de não voltar atrás no dito. Encaixar-se-ia, se necessário fosse, nem que fosse a última coisa que fizesse nesta vida.
Ato contínuo desceram o caixão ao chão e as carpideiras tiveram algum trabalho no rearranjo das velas e do crucifixo – afinal, aquilo ainda era um velório. Um vento súbito inflou as cortinas e o cheiro do cajá-manga inundou a sala. Sentei-me nas tábuas do assoalho, evitando o olhar da viúva e sabendo que aquilo seria ainda melhor que lhe roubar os frutos. Seu Salatiel, o boticário, segurou os ombros do defunto e convocou com um olhar um voluntário para os pés. D. Arminda foi aos pés e realizaram a operação, com algum esforço. Digna, porém um tanto relutante, D. Maria encaixou-se, lado a lado.
Orgulhava-me ter sido o autor da idéia de como acomodá-los. Timidamente empurrei um pedaço de bunda de D. Maria que insistia em não se recolher ao exíguo espaço. E mais ajuda não prestaria, pois bem sabia do peso acrescido ao esquife. Não só eu, mas Juca Stapanato, italiano dos mais fortes das redondezas, que ao pressentir que seria convocado para repor o caixão na mesa, afastou-se para a varanda, mesmo diante do olhar crítico dos presentes.
Iniciaram-se as rezas, já agora no plural, pois dois seriam os defuntos – que um era de fato e por direito, e outro de corpo e alma presentes, a ter-se entre as pernas do primeiro, em suspiros. Era espetáculo de não se perder o que viria depois: a colocação da tampa. Deixei sobre a cadeira o bolo de aipim e me posicionei no melhor ângulo que me permitisse ver a compressão da volumosa senhora, mantendo uma distância que me resguardasse dos gases que diziam expelidos por recém-defuntos.
Este conto contém 3 finais diferentes por sugestão da co-autora Teresa Mello.

Friday, January 12, 2007

O MELIANTE DAS LETRAS

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Soturno, sempre desconfiei de suas intenções. Menino, ainda, vestiam-no com casacos pretos, que combinavam com profundas olheiras e as pesadas botas que o obrigavam a um andar arrastado, olhando, vez por outra, para trás, como cão enxotado. Arredio às brincadeiras de rua, me parecia uma dessas figuras a quem a vida não concede uma saída, aprisionando-o dentro de si mesmo. Na mão, amarrotadas folhas de papel almaço, que dizia ser o suporte para o que mais gostava de fazer: escrever.

Nunca ninguém vira nenhum dos seus escritos. Apenas suposições dos que o encontravam desatento, com um cotoco de lápis, a rabiscar, longe dos gritos das crianças que, iguais a ele, tanto se diferenciavam pela alegria. Nem mesmo seu nome sabiam. Por todos era tratado como “o escritor”, único momento em que o brilho dos olhos manifestava seu agrado.

Aguçava-me a curiosidade maior que a mangueira debaixo da qual se sentava no quintal de um velho casarão.

Voltei a encontrá-lo quando o casaco e as botas eram bem maiores. O casarão e a mangueira haviam dado lugar a um prédio em que empilhavam novas famílias. Meu reconhecimento se fez pelas encardidas folhas de papel em suas mãos. Que idéias teria posto nelas? E aguçado pela já madura curiosidade, me aproximei.

Assustado, olhou-me de soslaio e apertou o chumaço de papel com o medo natural de quem vive numa cidade ameaçado pela violência onde o canto dos pássaros havia sido substituído pelo sibilo das armas de fogo.

Tranqüilizei-o com os ares de velho amigo e mansamente falei de uma infância que vivia na minha memória: dos ipês lilás e amarelos que coloriam a rua sem saída perfumada pelos jasmins; do café servido com bolo de fubá e aipim, nos fins de tarde, entre papos acalorados dos homens sob o olhar adocicado das mulheres. Falei, ainda, de Helena, para quem ele nunca dirigira um olhar. Helena tão cobiçada por todos nós... E aventurei-me:

- Diga-me, amigo, o que de tão importante escrevinhou nesses papéis, que sempre os teve protegidos dos olhares de todos?

Percebi o tremor de suas mãos que se seguiu à minha pergunta.

Aterrorizado, levantou-se e desapareceu ágil como nunca fora. Pensei nas pesadas botas...Foram muitos os anos e o reencontrei, cabelos brancos, corpo arqueado pelo peso dos seus próprios desencontros. Dirigiu-se a mim em passos arrastados sem que eu buscasse a aproximação.

Não fossem os papéis, não o reconheceria. Agora, tinha-os bem mais encardidos, mas não menos causa de sua inquietação e da minha curiosidade por tantos anos alimentada. Temendo afugentá-lo, pensava de como na abordagem viesse a desvendar o mistério dos seus escritos.Surpreendeu-me:

– Sempre vi nos que viviam próximos a mim a intenção criminosa de me tomarem os papéis. Por toda a vida eu os protegi. Cuidei deles como zelei pela minha alma. Neles está a minha própria razão de viver.

Como um meliante das letras, não resisti à tentação de roubá-los, cuidando de antes policiar se alguém me observava.

Arranquei de suas trêmulas mãos tão preciosos papéis, pois assim me pareciam. E num fôlego corri até a rua sem saída.

E lá estavam o casarão, a mangueira e o menino.

Deixei junto a ele os papéis em branco que roubara...

NOITE DE NATAL

Posted by Picasa“... e tudo na vida é sonho, mas os sonhos... sonhos são.”C. Barca.
E Marta o vislumbra entre as brumas da paisagem fantástica, pensamentos e sentimentos chegando aos dela, uma claridade mental que se interprojeta, ele e ela, ela e ele... um integrar-se em que nada se esconde...
Mas Carlos tem os olhos fixos no céu, recolhe em delírio as estrelas, coloca-as nas caixas de cristal, enlaçadas por fitas de arco-íris e lhe oferece o presente sideral. Porque é Natal...
Ouvem-se murmúrios. Há uma estranha música, lentamente transformada em gemidos delirantes. Luzes explodem na rua em guirlandas coloridas. E o orvalho das lágrimas escorre no rosto sofrido. O doloroso contraste... A alegria inalcançável chegando pela janela entreaberta... Distante, cintila a árvore de Natal... Ondas de vultos brancos abrem-lhe o sorriso tímido num rosto de neve. Trenós de prata cruzam a porta. O tilintar dos cristais mistura-se aos guizos das renas, ao coral dos anjos, às preces longínquas. Uma a uma, distribui as caixas de cristal aos que chegam e o cercam, ajoelhados em oração.
Pela janela, o sopro frio da madrugada ainda se faz mais frio. Ela e ele distanciam-se, caminhando entre as brumas, na busca da estrela-guia...
Agora Carlos dança, são volteios cadenciados. Cantos e ritmos pagãos enchem a sala. Cercado de atenções, lá está o homem sedutor que ele é agora, o dançarino sensual... Marta busca seus braços, o calor do corpo que busca. Mas Marta está agora sozinha no jardim... A chuva cai fina nessa noite sem estrelas... É preciso cumprir o ritual, tirar a moeda do seio, concentrar-se no pedido, jogá-la com as flores ao mar... Mas não há mares nem iemanjás... Apenas um coração... Porque é Natal...
E de repente, está de volta ao salão... Bocas embriagadas em delírios gritam alucinadamente, despertando cristos meninos das manjedouras das calçadas sob um céu riscado por fogos de artifício... E novamente Carlos, um vulto branco se esvaindo qual fumaça ao vento... Tenta segurar as fugidias vestes brancas... esbarra nos convidados... a dor da separação... as lágrimas contidas... toques estridentes...
E Marta acorda, confusa, telefone tocando, “feliz natal”, a voz da amiga querida, cumprimentando... Tão belo e estranho o sonho... Mas tem que levantar, tanta coisa a fazer, É Natal, sim, um infeliz Natal, Carlos a deixará, assim lhe fora dito na véspera... Uma viagem sem volta. Um oceano se estenderá entre eles... A distância infinita do adeus... Mas há outra distância, a dos sentimentos, a distância entre o querer e o poder, que cruelmente os separa... Sem piedade ou perdão pelos laços dos que um dia se uniram, dos que se quiseram bem, dos que um dia juraram fidelidade, quando noivos inconscientes das imprevisíveis paixões... das tristezas com que se tecem as renúncias... Da covardia dos que se acomodam e fazem da vida a rotina do meio termo banal, sem o encanto dos extremos, Ah, o mundo inconfessado dos desejos reprimidos, os sonhos denunciadores, uma supra realidade onírica do amor eterno e impossível...
Pensativa, Marta busca-se no grande espelho. Uma mulher sofrida, frágil, ainda bonita. Apenas o vulto branco na penumbra do salão vazio. Passos arrastados em direção à janela de onde chegam os sons da vida.
Atira-se anjo no espaço... explode seus sonhos na calçada...

MAGIC GIRL

Posted by Picasa Ela tinha 1,57 de altura e pesava 72 quilos. Usava uma camisola branca, curta, decorada com um rosto feminino escrito Mágic Girl, em letras vermelhas. Despenteada e com os olhos inchados, olhou-se no espelho e sorriu para a imagem que viu refletida.Lembrando-se de que ainda não tinha escovado os dentes guardou o sorriso e abriu a torneira do chuveiro e deixou que a água escorresse por seu corpo.
Olhou pela pequena janela e viu o céu desperto numa manhã radiosa que prenunciava o nascimento da nova mulher a que se propunha ser. Para tanto, teria que vencer aqueles malditos quilos. A cada aproximação do fim do mês a promessa de que no mês seguinte cumpriria metodicamente os exercícios físicos e a dieta imposta pela nutricionista indicada pelo seu já desanimado endocrinologista.
Cantarolou o "que será, que será..." de Chico Buarque e pensou na alcova sempre vazia. Mas ia dar um jeito em tudo aquilo. Quilos a menos, caminhadas a mais, e surgiria a nova Elvira, sedutora e seduzível, como fora alguns anos antes com Alfredo, seu primeiro marido.
Enfiou-se no jogging, calçou o tênis e, porta afora, seguiu célere para o calçadão, misturando-se as que, como ela, buscavam o novo padrão ditado por estilistas homossexuais e politicamente corretos com seus proeminentes bustos, bundas ajustadas em apertados jeans, multicoloridas camisas e sapatos graciosos. Já se via como uma das giseles e naomis magérrimas. Mas vômitos estavam fora de sua cogitação, bem como jamais abdicaria dos gateaux da pâtisserie da esquina de sua casa, ponto obrigatório na volta do escritório.
Perdida em pensamentos, walkman embalando seus passos cadenciados ao som de "Boom Boom My Hearth", cruza com Mario, o ex-gato das tardes dançantes do clube. Finge que não vê, o que até poderia ser possível pelas grossas lentes que a miopia a obrigava a usar, mas impossível pela barriga ostentada e pelos ralos fios da outrora bela cabeleira que emolduravam o nariz grego perfeito daquele que fora a paixão da sua juventude.
Ao acordar, sentindo os efeitos da bebedeira da noite anterior, com a cabeça latejando, boca seca e lábios dormentes, ainda sob o chuveiro, Mário determinou-se a mudar de comportamento. A água que lhe empapava os poucos fios de cabelos que ainda lhe restavam, acumulava-se no alto da barriga e quase não atingia o órgão que, outrora, admirava com orgulho. Hoje, avistá-lo, só com o auxílio do espelho, objeto que ultimamente procurava evitar.
Enrolado na toalha, que praticamente não cobria a circunferência que se transformara sua cintura, retirou da gaveta a velha bermuda cáqui, o par de meias brancas com frisos vermelhos e pretos e uma camiseta com a estampa de sua marca de cerveja favorita. Providenciou óculos de sol para esconder as olheiras, colocou alguns trocados no bolso para a água de coco que sabia iria necessitar e foi para o calçadão como quem vai para a guerra. Era sua batalha pessoal que começava a ser travada: a partir de hoje, nada de noitadas regadas a cervejas e vinhos baratos, adeus aos torresminhos do “Sujinho” e: Piranhas chorem, eis que está nascendo um novo Mário!
Após três anos de viuvez, resolveu enterrar de vez a esposa e partir para a uma nova vida. Isso mesmo, uma mulher de verdade, com direito a jantar a luz de velas e às cenas de ciúme; que lhe proibisse de sentar no sofá quando estivesse suado, que reclamasse da toalha molhada sobre a cama. Uma mulher que, à noite, o cutucasse com os cotovelos, quando roncava; que implicasse com o cheiro do cigarro e com o bafo da bebida. Era disso que sentia falta: da mulher de verdade – cansara-se dos perfumes francês, made in Paraguai, comprados nos camelôs, das marcas de batons vermelhos no colarinho, de acordar em camas, cujos colchões ainda guardavam os cheiros de outros homens e de corpos que não se ajustavam ao seu.
O pensamento, voltando ao seu corpo de formas roliças e flácidas, remeteu-lhe ao calçadão, armado com o diskman, onde introduziu um CD de Louis Armstrong, iniciou sua caminhada.
Mal dera duzentos passos e cruza com Elvira. Fez que não a viu! Inacreditável como algumas pessoas têm a capacidade de se enfear cada dia mais. Lembrou-se das domingueiras, onde Elvirinha o perseguia. Magricela, míope e carente, ficava na “xepa”, aguardando os rapazes levarem um fora de suas prediletas e só então recorrerem aos seus favores. E ela ali, dócil, carente, disponível, consolava e consolava-se com poucos beijos na boca e amassos escondidos em algum canto mais escuro do clube. Mário também se consolara com ela quando fora preterido pela Miss Primavera e a partir desse dia Elvirinha encarnara nele, o perseguia com telefonemas, bilhetes e poemas.
Até que terminaram o colégio, ele fora para a Faculdade de Engenharia e Elvirinha passou a lecionar no próprio colégio de freiras, onde estudara. Anos mais tarde, Mário soube que Elvirinha casara-se com o ex-seminarista, Alfredo, que levava a pecha de homossexual, porque ajudava nas missas do capelão da escola, o qual era conhecido no meio estudantil por não resistir aos apelos masculinos.
As passadas agora eram mais curtas e lentas e ela começa a desconfiar que a meta de um quilômetro jamais seria atingida. Conforma-se e busca na observação dos caminhantes distrair-se das dores que começam a se manifestar na batata da perna. Esquecera-se do alongamento recomendado por D. Alzirinha, a vizinha do terceiro andar que tinha no Dr. Cooper um Deus, se bem que um Deus que não lhe proporcionara o milagre da elevação dos peitos e desaparecimento do culote. Mas, enfim, nem todo Deus é perfeito, pensava.
Seus batimentos cardíacos alterados jogaram-na num banco e por ali ficou a olhar João Ubaldo, o escritor, a perseguir um manquinho bem mais ágil, até que ambos desaparecessem de suas vistas com a vitória do manquinho por alguns metros.
“Arrastão! Arrastão!”. Os gritos vindo da areia coloca-a em sobressalto e lhe tira a atenção da loura coberta por um minúsculo biquíni. Já a vira na “Caras” e lhe pareceu com a mesma maquilagem exposta agora ao Sol. Corpo marombado em academia, a loura tinha ao seu lado um senhor de seus sessenta e muitos anos e, certamente, de alguns muitos milhões na conta bancária.
A correria generaliza-se. Mas não seria ela exausta como estava que iria fazer parte daquela maratona, entre freadas e buzinadas. À distância, vem vindo Mario, passo de cágado, levando-a à certeza de que, como ela, pousara em algum banco, antes de retornar à casa. E dá-se o encontro, com o arfante Mario sentando-se ao seu lado e massageando as pernas finas que lhe pareceram em desequilíbrio com o volumoso tronco.
- A violência nesta cidade está de um jeito que não encontramos um momento sequer para o nosso lazer...
O comentário não se perdeu no ar já que justificava para ambos o abandono de seus projetos. E foi fundamental para que começassem a falar do passado, matinês no clube, casamentos, com interrupções de “morreu” à lembrança de um ou outra dos saudosos tempos da juventude.
Foi quando os batimentos cardíacos de Elvira voltaram mais intensos ao repentino convite que se seguiu à interrogação do que ela faria naquela noite.
- Conheço um barzinho super agradável numa transversal de Botafogo onde poderíamos conversar com tranqüilidade. Sou amigo do dono e garanto um tratamento vip, com bebida e tira-gostos honestos. Se não tiver nenhum programa, passo em sua casa às nove. Está morando aonde?
Passou o endereço, angustiada de que ele viesse a esquecer. Despediu-se com um beijinho de cada lado. Naquele momento, efetivamente, sentiu-se uma magic girl. E foi para casa, com outras idéias na cabeça.
Quando a campainha tocou, Elvira ainda mergulhada em dúvidas mexia na gaveta de lingerie. Algumas ali estavam na longa espera em números menores. Num sobressalto, lembrou-se de estar sozinha, pois dispensara Conceição dos serviços antes de entrar no banho. A insistência levou-a a enfrentar a realidade de um peignoir sobre a pele e correr para a porta. Certificada de tratar-se de Mario pelo olho mágico, girou a chave, pedindo que lhe desse um minuto, entrasse e aguardasse no sofá até que acabasse de se arrumar.
A presença de Mario já na casa apressou a decisão sobre o conjuntinho preto de rendas que lhe pareceu simpático caso a noite se prolongasse. Apertou-se num jeans, uma camisetinha básica, enfiou o pé numa sandália, outra, mais outra, até certificar-se de ser a de tirinhas a mais sexy. Blazer creme realçando os adereços e pronto. O último olhar no espelho para conferir a maquilagem e partiu para sala deixando no ar o aroma do “Trésor d’Amour”, de Lamcôme, que lhe pareceu perfeito.
Sentiu-se uma deusa pelo olhar de admiração, dois beijinhos, um “oi, como vai?” e o “Vamos?”, com a segurança de ser a dona da bola.
A noite prometia e Mário, com a experiência dos anos de viuvez, percebia que não precisaria de muito esforço e dinheiro para ficar com Elvira. Pela maneira em que se arrumara e se perfumara a presa já estava no laço, era só apertar um pouquinho.
Ainda com o pudor adolescente de reencontrar amigos da velha turma, não colocou os braços sobre o ombro de Elvira, caminharam, lado a lado, pelo calçadão a procura de um táxi e quando o encontraram Mário deu o endereço do restaurante. Dentro do automóvel, colocou as mãos, amigavelmente, sobre os joelhos da companheira, sendo sutilmente repelido.
Oras..Oras...pensou. E essa, agora?Esquecido do regime e das determinações impostas pela manhã, Mário pediu um filé à parmegiana, acompanhado de uma cerveja preta, esquecendo a salada verde no canto da mesa. Elvira o acompanhou e não resistiu à sobremesa, nem ao café com creme, oferecido pelo garçom. Conversaram sobre o passado, evitando a parte constrangedora do relacionamento anterior, falaram dos falecidos, da rotina que os engordara e os entristecera, brindaram ao reencontro no calçadão e às promessas descumpridas.
Mário, mais por ser um cavalheiro do que por tesão, insinuou que poderiam esticar a noite em seu apartamento e ela gentilmente o liberou do encargo.
Despediram-se com um beijo no rosto e o velho cansaço nos olhos. Ao retirar a maquiagem e vestir a velha camisola, onde em letras coloridas lia-se Magic Girl, Elvira sentiu a necessidade de programar o rádio-relógio para despertar as 7h00 da manhã, a caminhada no calçadão a esperava.
Se tivesse olhado pela janela do apartamento teria percebido que Mário dispensara o táxi e dirigira-se ao boteco próximo. Bebia a primeira dose de um uísque enquanto olhava para as pernas bronzeadas e bem torneadas da mulher, de mini-saia justa e decote pronunciado da mesa ao lado. O olhar de desprezo da mulher trouxe a Mario a realidade do quanto necessitava se por em forma. Pediu a conta sem mesmo terminar a dose de uísque e foi para casa. Ao passar na portaria, uma solicitação ao vigia para que interfonasse às 7h00, pois retornaria à meta dos menos 15 quilos.
Numa olhada para trás, viu Elvira aproximando-se. Diminuiu as passadas até que ela emparelhasse e seguiram firmes em seus propósitos.

O BEIJA-FLOR E A ROSA

Posted by Picasa Sempre assim as rotineiras manhãs no casamento sem brilho, preso pelo fio das convenções sociais, quem sabe, melhor dizendo, da norma fundamental, a que se obriga... Entre o acordar e o adormecer, entre os dois crepúsculos dourados, o contraste do descolorido da própria vida... O suceder dos mesmos dia-a-dias, pontilhados por difusa expectativa... E agora ali, diante da janela, à espera... Pressente que virá... E virá espargindo charme, jeito blasé, de convicta sedutora entediada? Quem sabe ansiosa? Algo novo na vida... Talvez a mulher em tantas outras vislumbrada, e enfim ali inteira, encontrada, ali presente, ela mesma...
Óculos... A vista já cansada das tantas leituras, na longa procura da mulher perfeita, que sempre acreditou existisse. Acreditou... Não mais...
Sabe-a imperfeita, como todas as outras que imperfeitas são, malgrado as teias dos estudados complexos sentimentos e emoções... Sim, sabe-a perdida e imperfeita... Por mais que tenha enriquecido a mente, sempre versátil e aberta...
Jornal abandonado ao lado, tão pouco o interesse pelo moto continuo das tragédias, já tornadas rotineiras, tanto se repetem embotando os sentidos...
Aguarda... Como aguardara em tantas outras manhãs ensolaradas que ela chegasse, romanticamente, pelo vidro da janela... Sonho e razão em harmônica convivência. A ainda imprecisa bem-amada cuja ausência se faz sentir nas solitárias noites enluaradas, ou na estranha saudade configurada na chuva caindo, quando sozinho suspira à janela...
Mas, aos poucos, a manhã se transmudando... De onde os enigmáticos acordes entrando pela janela, pelos ouvidos já ansiosos, trazendo mensagens nunca antes apreendidas? E então o vê, jóia preciosa, brilhando ao sol, no bater das asas, um beija-flor pequenino, que, frenético, se aproxima, girando sobre si mesmo... Quem sabe reverência, quem sabe um beija-flor também buscando amor, amor de beija-flor...
Sonhador e curioso, assiste ao mágico balé do passarinho na roseira, no palco que a natureza ensolarada lhe empresta, beijando as belas rosas, que o recebem entre espinhos, sem magoar... Como ele próprio receberia um dia a bem amada se viesse, os espinhos da vida afastados...
Quem sabe também assim, entrando pela janela, trazida pelos secretos desejos, pelas forças da natureza, um destino escrito e cumprido entre os que se buscam respondendo a enigmáticos chamados...
O vento sopra forte agora...
Tão sensuais os movimentos da roseira... Rosas desabrocham... Há um expor-se e oferecer-se ao beija-flor... A rosa favorita encontrada. Fim da busca? Ou colhida a rosa preferida, outras rosas viriam, num infinito procurar de rosas desejadas? Suga a rosa mais querida... Que se desfolha... E com ela a própria vida? Tombará por fim sob a tristeza do pálido luar? Sob os apelos do sereno em lágrimas desfeito?
Volta à floresta o saciado beija-flor...
Já não há sol... Que as nuvens escuras trazidas pelo vento encobriram... Trovões ameaçadores se sucedem... Pressente na agitação da natureza e de si próprio que é chegado o momento do encontro... E no imprevisto cenário, nunca imaginado... Há um frenético bater de mãos nos vidros da janela... E então a vê chegar, dobrada e sofredora, molhada e suplicante, a sonhada bem amada, os braços estendidos... Tão oposto da imaginada figura sedutora... E talvez por isso mesmo mais querida... Que ele ampara e leva ao leito... E entre afagos e sonhos realizados, um frenético beija-flor e uma rosa desfolhada...
Desfaz-se o cenário. Sonho ou realidade, se pergunta ele? Não sabe... Que importa? Viveu momento de paixão... É o que conta... Talvez por instantes a outro mundo levado, na enigmática intersecção de tantos universos... Na busca do beija-flor, a sua própria busca... Um beija-flor e uma rosa desfolhada... O homem desejoso e a mulher encontrada... Cumpriu-se o que os astros decidiram? Conhece enfim o sentimento que chamará de amor...

OS GRITOS DE AÚA

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Vê o mar em frente... E na linha do horizonte, o céu se fazendo mar, que brancas gaivotas sobrevoam... Vôos de liberdade...
Fixa o olhar nos braços do Cristo Redentor...
Da rua, chegam as vozes das crianças inalcançáveis em seus jogos infantis. Isolada pelo muro do preconceito, a menina excepcional se perde entre as vozes confusas do rádio sempre ligado, prisioneira da incompreensão familiar, o mundo só entrando pelas frestas da janela, de onde partem seus gritos: aúa, aúa, aúa...
Chamavam-na de “Aúa”.Aúa é o grito-símbolo da minha infância.“Aúa” é a rua sem saída, terminando nos muros da mansão do banqueiro do jogo de bicho...
“Aúa” é o apelo da liberdade negada, o passeio na pracinha, o mundo lá fora transbordando de sensações... “Aúa” é o cheiro recendente do bolo de fubá, o perfume dos jasmineiros, as vozes infantis nas brincadeiras... “Aúa” é o colorido dos flamboyants que sombreavam as tardes quentes da minha infância... “Aúa” era a curiosidade, o medo dos gritos da menina saídos das frestas da janela, pegando-me desprevenido, quando, fugindo da vigilância da ama, caminhava sozinho até os limites da tinturaria.
Nunca vi “Aúa”. A imagem que guardo é de felizes meninas pulando “amarelinha” ou, cabelos ao vento, indo e vindo na calçada em suas bicicletas. Aúa nunca estava entre elas. “Aúa” era um som... O grito do inconformismo.
Sem “Tarik” e “Pipoca”, o casal de fox-terrier quesaudava meu pai na volta do trabalho, deixei a rua sem saída, mudando algumas quadras adiante para o casarão de minha avó materna, cega e bondosa. O casarão já não vivia o seu apogeu, com as paredes aqui e ali descascadas. O casarão onde, na biblioteca, o tio esquizofrênico acumulava em grande desordem volumes e traças. Lá, eu acordava com o cantar dos pássaros e dormia ouvindo o pio da coruja, o agitar do vento nos salgueiros, o eco de passos no corredor.
Era um tempo mágico, impregnado pelo aroma da bananada feita no tacho de cobre no fundo do quintal sob o comando da avó acertando pelo olfato o ponto.
Era um tempo de histórias e fantasmas. Das fugas de Honorina, o bicho-preguiça, para o quintal do vizinho “Cuco”, que aparecia na janela gritando que fossemos buscar o pobre animal inofensivo para que voltasse ao ipê do quintal, onde me aboletava num dos galhos para ver através da janela do banheiro as mulheres se banhando.
E era tempo de colher frutas no pomar do casarão, disputando com pardais, rolinhas e morcegos em vôos arrojados, as mangas, carambolas, abios, sapotis, ameixas, abacates... Tempo de brincadeiras, de quedas das árvores, algumas terminando por levar-me ao Pronto Socorro pelas mãos aflitas de minha mãe.
Alfabetizado muito novo no ginásio fundado do meu avô, lia os jornais, atendo-me ao diário de “Giselle, a espiã nua que abalou Paris”, publicado num vespertino.Tempo das manchetes de uma guerra só sentida pelo racionamento do pão de tostão da “Padaria Colombo”, uma homenagem equivocada do “seu” Joaquim ao descobridor do Brasil.
Tempo ainda da mansão do banqueiro tornada centro de recrutamento da Força Expedicionária Brasileira. E de conversa de adultos sobre os valores nutritivos das batatas que alimentavam famílias inteiras durante a guerra, a justificar a sua presença sempre à mesa, fossem fritas, cozidas ou assadas. Tempo dos meus pesadelos com os ratos que infestavam o casarão, influenciado pelas narrativas de que serviam de alimento aos guerreiros famintos.
Estranho mundo que fazia guerras pela paz, formando novos impérios. E despersonalizando povos milenares em suas tradições.
Crescendo, fui ganhando o mundo negado a “Aúa”.
Pelas mãos de Orumba Paracatu Mandina, neta de princesa escrava e “filha de criação” do meu avô para serviços domésticos, conheci a espuma do mar de Copacabana que iria curar-me das crises de asma. Orumba de canto triste, que ganhara a liberdade pela Lei do Ventre Livre, vindo a morrer de nó nas tripas depois de sofrida prisão de ventre.
- Ô, menino, vai comprar manteiga, lá na Travessa do Ouvidor...
A ordem partia de minha avó ou de uma das tias e trazia a emoção da longa viagem no sacolejar do bonde, com baldeações no Tabuleiro da Baiana. O troco virava suco na “Laranjada Americana” ou caldo de cana no Hotel Avenida.
No Largo de São Francisco, buscava com meus olhos de criança o clarão do incêndio do Park Royal em que tantos haviam morrido, aprisionados pelas portas trancadas, num inferno de fogo e de celulóide dos brinquedos que traziam sorrisos às crianças. Lá estava apenas o espaço vazio ao lado da Igreja de São Francisco. O santo me parecia descuidado pela quantidade de fiéis mortos.A vida se alongava...
Sepultos, agora, os trilhos, tirados da paisagem carioca os bondes lotados dos alegres foliões nos carnavais de confetes e serpentinas.
E enquanto os gritos de “Aua” ainda ecoavam, no sacolejar da História, a Ciência avançava para o Bem e para o Mal, a penicilina curava milhares de vidas, que a era atômica aniquilava em Hiroshima e Nagasaki. Sabin com sua vacina nos livrava de muletas e cadeiras de rodas as novas gerações, mas que voltavam a ser ocupadas pela velocidade imprimida aos veículos por um mundo que queriam mais moderno ou das balas de armas cada vez mais sofisticadas e mutiladoras.E no casarão, os gritos dramáticos do tio esquizofrênico. Que não o internassem no sanatório onde choques elétricos o devolviam mais gordo e manso dos surtos do seu mal.
Médico homeopata era o tio quem curava os moradores do casarão das doenças, com o “Alium Sativum” ou o “Nosvômica”, de sua farmacopéia mantida numa caixa com o título de doutor que fez por merecer.
Bengala e guia da minha avó, era eu quem, trôpego de sono, a levava á missa das cinco, para pedir perdão pelos pecados que não tinha. Era o meu calvário na direção da cruz da Matriz, cumprido religiosamente todos os domingos e que me dava o direito de ser o guardião da chave da gaveta da escrivaninha dos mil réis e do guarda-casaca onde, entre peças do seu enxoval, estava a latinha de caramelos com que ela premiava os bons feitos dos netos.
“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...”
Muitas eram às vezes em que, convocado, sentava ao seu lado para a Hora da Ave Maria, na voz de Julio Louzada. Não seguia as rezas, mas ficava aguardando a “Ave Maria” de Gounod que encerrava o programa.
“... bendita sois vós...”.E nem poderia deixar de ser, pensava.As orações eram agora dirigidas pelo padre, enquanto os círios queimavam e o espermacete escorria como lágrimas. No salão forrado de azul com flores de Lys douradas, o caixão com vovó vestida com o hábito da Irmandade do Carmo a que pertencia. Uma grande cruz de prata reluzia à sua cabeceira. Na parede, o par de quadros retratando meus bisavós cujos olhares pareciam acompanhar as reverências à filha morta. Em suas mãos, o terço de ametistas trazido de Roma por um dos filhos, junto com a absolvição plenária concedida pelo Papa Pio XII, conforme documento emoldurado em seu quarto. A decisão de enterrá-la com o terço foi tomada por eu ter dito ser esta uma de sua vontades. Mesmo não sendo verdade, vovó merecia.
Lá fora, o cocho de penachos negros e a longa fila de carros aguardavam o fim dos trabalhos. Desci pela última vez as escadarias de mármore do casarão.
Anos se passaram...
Retornei à rua sem saída e ao casarão. Queria de volta a minha alegria infantil, o cheiro da bananada, o sabor da manga madura apanhada no pé... Fui em busca do meu sorriso espontâneo, minhas solidões, meus silêncios e minhas lágrimas... Meus medos inocentes das sombras projetadas pela luz da candeia...Por onde andariam os fantasmas escondidos nos cantos escuros de tábuas que gemiam à noite, o pio da coruja, o ranger das portas, o farfalhar do salgueiro, os passos ouvidos no corredor?Que retornassem com meus sonhos, dúvidas e desatinos, querências que me foram arrancadas sem consulta... E a menina de trança que ria do meu amor primeiro...Que fora feito da espera dos cometas que não vi, das estrelas que fiz minhas, dos horizontes azuis aonde não cheguei?Queria de volta as crenças em promessas não cumpridas, esperanças e devaneios... E o grito de liberdade de “Aúa”.
Queria o futuro que meu passado prometeu.
Só encontrei escombros...

Thursday, January 11, 2007

FIM DE LINHA

Posted by Picasa Atira o paletó sobre a cadeira, dramatizando o gesto:
- Tô desempregado!A mulher, olhos fixos na novela, suspense no auge, mal ouve a informação, sequer desprega os olhos da tela, mas indaga, e agora? A pergunta tanto podendo se dirigir à novela quanto à perda do emprego.
- Xiiii, pai... A menina brinca com o piercing do umbigo, a perda do emprego do pai frita os sonhos mais recentes, viagens, roupinhas de grife.- É, pai, estamos ferrados... As palavras do filho se contrapondo ao pensamento. Sabe que o pai pouco acrescenta ao lar, a mãe, sim, é o sustento de todos, uma lutadora.Sim, ferrados estaríamos, pensa ela, se a manutenção de tudo e todos dependesse dele, marido preguiçoso e temperamental. Emprego nenhum lhe parece bom, este até que tinha durado muito, três meses, enquanto ela se rala na direção da escola, entre crianças voluntariosas e seus pretensiosos pais novos-ricos, e cuidando da casa, atendendo aos filhos, ouvindo os eternos queixumes do milongueiro desempregado.

Até quando? Até que ponto se pode esticar as fibras, até onde responsabilidade sua também, acomodando-se aos rumos da sua vida, contemporizando, como se os acontecimentos tivessem vontade própria e dirigissem seu destino, levando-a a deriva, parecendo viver entre cegos-surdos-mudos, alheios às dificuldades, a cada dia mais monossilábicos, desencontrados do saudável hábito do convívio familiar, marido capaz de dissertar horas com o vizinho, (outro vagabundo labioso), marido que tudo sabe sobre tudo e sobre todos, e em detalhes o escândalo político que tomou conta das atenções do país, discutindo com minúcias os episódios do dia anterior, erros e acertos dos envolvidos, em teoria, um salvador da Pátria...

Mas boca e ouvido fechados, quando se trata da inaptidão do filho para o trabalho, seu mui digno herdeiro, vinte e cinco anos, sem escola e sem emprego, dormindo com a chegada do sol e acordando com as primeiras estrelas, cantorzinho de banda mequetrefe, surfista domingueiro e, quando não em cima de uma prancha, navegando na Internet onde despeja o saber que raramente vai além de um “ki koisa, ein?”. E pensar quanto sonhara para ele um diploma de médico, quanto se privara pagando cursinhos caros e vestibulares longínquos... Dinheiro posto no lixo... E a filha cujos interesses parecem se resumir em tatuagens, piercings e namorados em seqüência... Que família! Sementes ruins, explica a mãe, consolando...Então aconteceu que, naquela noite, assistindo aos jornais, súbito, se deu conta de que apenas três grandes inteligências, para o bem ou para ou mal, ou ambos, (quem é que sabe?) vinham se revelando ao país estupefato, o satânico homenzinho careca, o homem que parecia estar em toda parte, envolvido em mil maquinações, falando em milhões como ele fala em moedas de dez centavos, um gênio, sem dúvida, vontade até de escrever aos jornais, propor fosse ele o presidente da República, em nome da competência, malgrado todas as maroteiras. O segundo, o político mais famoso do país, o grande líder que, em surdina, tinha colocado sob suas rédeas um país inteiro, nunca deixando rastros, negando qualquer ilícito, tudo com cara de homem integro, inocente... E o terceiro, o político cantor, o homem que tudo sabe, nenhuma parede por mais sólida, nenhum cofre por mais seguro, lhe escondem qualquer segredo, nada escapa ao seu olhar penetrante, e ainda um grande cantor, um “mis-en-scene” como raramente se tinha visto, artista nato, o país inteiro pendurado nas suas palavras, ora candentes, ora suaves, mas sempre peremptórias... Que trio... Ah! Era com gente assim que gostaria de lidar, sair da mesmice da sua vida, dar uma guinada, fazer baixar o olhar desafiador da mulher, dar aos filhos a realização dos desejos... E por que não?O telefone toca...Na linha, o companheiro de muitas parlapatices dos tempos de sindicato. Comentou sobre seu alinhamento na legião dos dez milhões de desempregados e das nuvens negras que ameaçavam sua família. Se havia parte de verdade, esta era a de que mais pesaria ainda para a mulher.Seguiu-se a convocação para que fosse para a capital, um verdadeiro eldorado.E por lá aportou.Asas brancas transportando sonhos de igualdade do arquiteto genial.Coriolano o esperava no desembarque, sorriso largo:- Grande companheiro!Cumprimentos efusivos de parte a parte e seguiram para o apartamento da Super Quadra Sul, onde já o aguardavam a mulher do amigo e os filhos do casal.Já estava tudo acertado, garantiu o amigo que transitava com grande desenvoltura nas ante-salas palacianas. Iria para o gabinete do deputado Hermenegildo de Almeida, como um aspone a mais até que firmasse conceito.
- Mãe corre aqui. Pai tá na televisão!
O grito histérico da filha fez com que se antecipasse aos fatos, imaginando-o crivado de balas, tombado pela violência a cada dia ocupando mais espaço na mídia. Mas o que viu foi Hermógenes ladeado por dois policiais federais, algemado, entrando num camburão.Corte na cena e reaparece o pilantra tentando esconder o rosto, enquanto a voz da locutora chega pastosa aos ouvidos da família Penteado:

- Preso hoje em Brasília Hermógenes Penteado, um dos integrantes da máfia chefiada pelo funcionário Coriolano da Silva e principal responsável pelo superfaturamento na compra de quinhentas geladeiras que seriam distribuídas aos congressistas. Ex-assessor do gabinete do deputado Hermenegildo de Almeida, foi indicado para chefiar o Departamento de Manutenção da Câmara dos Deputados e era quem ficara encarregado das licitações por indicação do Sr. Coriolano da Silva.- Que incompetente! Foi o único adjetivo que a mulher encontrou.
- Tinha mesmo que ser preso esse pulha envolvido com geladeiras, pois pela vida só fez entrar em fria. Sempre desconfiei do Coriolano, desde os tempos do sindicato, quando vivia a tripa forra as custas das contribuições dos operários.
- Pára mãe! Não esqueça que ele é seu marido e meu pai...
- Seu pai. Meu marido deixou de ser a partir de agora. Vou procurar advogado e entrar com ação de divórcio. E mais essa agora... Não bastassem anos e anos eu ralando em salas de aula para garantir o supermercado e agora ter que aturar a pecha de mulher desse Brastemp de uma figa. Em que gelada me meti...
CPI e lá está a cara cínica a negar tudo.
- Atende aí, gente. Será que nessa casa nem para atender telefone vocês servem...
Do outro lado da linha a voz sussurrante já agora do ex-marido...
- Alô... Quem? Ué, saiu da cadeia? Melhor que tivesse ficado de vez por lá... Pelo menos garantiria casa e comida de graça, porque aqui nem pensar, pois não vou sustentar vagabundo corrupto... Como é que é, habeas corpus? Esse país não tem jeito mesmo...
- Amor...
- Amor é o cacete. Vai dizendo logo a que veio... Se for dinheiro, tire seu cavalinho da chuva... No meu agora você não põe a mão em nem mais um níquel... O que? Festejar a liberdade? Só me faltava essa... Só falta ser com recepcionistas e num hotel de Brasília...
Bate o telefone, dirigindo-se a filha:
- Vá a gente acreditar na Justiça. Só a de Deus e ainda assim temos que morrer para conferir. Que vergonha, Senhor, que vergonha! Nada disso... Não tenho que ter piedade coisa nenhuma. Piedade, sim, dos milhões que minguam de fome, das centenas de milhares de crianças cujas barrigas só se enchem com verminose. Sepultaram de vez a ética sete palmos abaixo das fundações do Congresso... E essa camarilha a fazer o povo acreditar que chegavam para mudar o Brasil.
- João Alfredo, aonde você vai?
O filho, sem que mesmo lhe dirigisse um olhar, anuncia a ida a Brasília, onde, a pedido e expensas do pai, iria com a banda animar a festa da liberdade e – quem sabe? – fechar contrato para participar de comícios do partido governista.E arremata, com jeito debochado:
- Mãe, estamos em campanha. Pai vai ser lançado candidato a deputado pelo Distrito Federal. Processo... Que processo? Vem pra Caixa você também...Vem!

PÉ DE ANJO

Posted by Picasa A negra Tereza, vizinha de dois barracos adiante se orgulhava de tê-lo amamentado quando o leite secou no peito da mãe, pouca coisa mais que dois meses depois de parido.

Com o negrinho as coisas se antecipavam: caminhara aos sete meses, acordava sempre antes, precipitava-se em suas alegrias, adivinhava as falas, antecedia as desilusões, sofria precocemente. Na hora certa, exata e aprazada, somente o petardo: nem antes, nem depois – certeiro e justo.
"Pé de Vento" era como o chamava a clientela da negra cujos muitos quilos recomendava as boas marmitas que fazia. Do filho não cobrava mais que suas carreiras na entrega do sustento. De instrução, muito pouca. O futuro do negrinho estava mesmo nos pés.

Rápido como o vento, disputava carreiras com os veículos, perdendo todas, metros adiante, pondo a culpa no fôlego que lhe faltava, arquejante e sorridente.

Nos altares da minha infância, lá estava sempre com asas nos pés, nos incríveis dribles das peladas da rua. Verdade que negros, não os encontrava barrocos entre tantos outros louros que adornavam a Matriz.

Nunca ninguém soube seu nome e pouco importava que tivesse. "Pé de Anjo” para nós era "Pé de Anjo" e só. Era como todos os chamavam entre os gritos de "passa a bola" ou "chuta logo". O que fazia com perfeição diante da pequena platéia de operários onde era erguido o monumental estádio. Suarento, sentava-se ao final de cada partida no chão de terra batida e sonhava um dia transpor o tapume que delimitava o espaço, junto à entrada da geral do Maracanã, em final de obra.

Assegurava a todos que um dia, do lado de fora, ouviríamos os gritos da torcida do seu time, a incentivá-lo nas arremetidas em direção ao gol. Não sei onde foi arrumar as chuteiras velhas que calçava, meio desequilibrado. Mas os protestos da molecada descalça foram tantos que não mais as usou. Onde já se viu pé de anjo de chuteiras?

O pai morrera de tísica, garantia. Certo mesmo é que jamais o tivera. Mas isso pouco importava, superior na qualidade daquilo que mais gostava de fazer: correr uma corrida inútil e sempre perdedora contra tudo que se locomovesse a motor ou deixar caídos para trás os moleques do time adversário.

"Pés de príncipe!", ria-se dele a mãe, nos poucos momentos de rir.

Na segunda-feira, a caminho da feira do Campo de São Cristóvão, a desabalada carreira num revezamento de pés impulsionando o carrinho de rolimã que garantia com os carretos um troco mais ao sustento do barraco. Hora da entrega da marmita e a disputa com o bonde de São Januário. Uma boa arrancada – perderia, é claro, qual ser movente poderia encarar a máquina no cio, ladeira acima? Mas acenariam lá de dentro todos os operários – “Pé de Anjo”!, “Pé de Anjo”!, assim como gritam em dia de descanso, à beira do campo de várzea, quando ele, enlouquecido, arranca novamente desmantelando a zaga adversária.

Um dia, "Pé de Anjo" não apareceu para a pelada. E o aroma da carne assada, banhada no feijão, que a mãe mandava para a freguesia, deixando um rastro de sabores que sinalizava a hora do almoço, não mais aguçou o apetite da vizinhança.

Nessa noite, ele antecipa e dormem os outros – Minguinho, Trolha e Zé Baião; Cafuné, Orelhinha e Delson; Joãozinho de Irene, Índio, Nonato, Tião da Timbira e Mangueirinha. Entre o sono de Nonato e Manguerinha, a sua vigília.

De costas, mãos cruzadas sob a nuca, sorri quando ouve o primeiro canto de Trasontonte, o único macho que com ele disputava os sorrisos de sua mãe. Conta os regulamentares doze segundos e ouve o galo de D. Arlinda cantar, seguido de outro e de outro ainda mais. Sabedor de que “um galo sozinho não tece a manhã”, espera que os cantos se confundam e entreteçam a aurora.

O canto estridente do galo cede vez ao despertar com o rádio bem baixinho na esperança de ouvir uma palavra de Jaguaré. Cedo demais. Um passo pra fora e recolhe os uniformes do Leão de Ouro, as meias ainda úmidas. Alisa as camisetas, os calções, arranja no saco de estopa, ganha a rua.

Cinco quarteirões até o campinho. O ar morno, o compasso de seu coração e o cheiro da dama-da-noite acabam por chamar seus companheiros: Ademir Menezes o alcança na primeira esquina, chuta a bola para defesa de Barbosa. Riem os três, já sabendo do que acontecerá naquela manhã, o Leão de Ouro levando a Taça do Campeonato de Várzea, com dois gols irretocáveis saídos daqueles pés de anjo. No quarteirão seguinte Jair bate uma falta e junta-se ao passo gingado do grupo. O sol já se denuncia, bola vermelha alçada ao céu. Se alegria tem nome e jeito, ele sabe que deve ser isto que sente agora e mais o cheiro de couro das chuteiras que traz na sacola a tiracolo. Carrega-as e não mais as calçara desde o protesto dos meninos, embora os pés as reclamassem.

Tesourinha e Heleno surgem no último quarteirão. Elogiam as camisas improvisadas, passam os dedos na faixa preta, lambuzam a cruz vermelha e se borram nas tintas vagabundas. Ri com eles, nem se importa. Amigos, daqueles de passar a mão na bunda em sinal de apreço. Sabe que alcançado o campinho suas brincadeiras não mais existirão, suspensas até a madrugada do domingo seguinte.

A Copa do Mundo de 50 trouxe-lhe algumas lágrimas, mas não lhe apagou o sorriso da esperança.

- Esperem que numa próxima estarei lá para ajudar a molecada a trazer o caneco. À sua volta, debochávamos, mas com certo respeito. Tião da Timbira nunca o poupava das gozações e emendava com um “só se for como marmiteiro da Seleção”. As desavenças entre os dois cessavam no campinho em trocas de passes perfeitos, seguidos de abraços sob gritos de “gol!”.
Os anos correram mais que seus pés e nunca ouvimos a multidão gritar seu vulgo no Maracanã. As notícias chegavam pelo vento. Diziam que era dono da cantina próximo ao campo de várzea, onde o consumo da bebida se tornava cada vez maior; outros afirmavam que era técnico do Leão de Ouro, cobrando sempre velocidade e toques de bola dos seus jogadores, só satisfeito quando todos resfolegavam ladeira acima, ladeira abaixo, no campo ao pé do morro.

– Pois é, doutor, teve jeito não... A pereba não curava e o jeito foi cortar o pé mesmo. Não sei para onde meu pé foi...

Não fosse o sorriso alvo, não o identificaria pelas têmporas grisalhas e as profundas rugas, marcas da vida e do sofrimento.

Silenciosamente afastei-me e me dirigi ao Serviço de Patologia. Lá estava ainda o pé. Por momentos, tive a impressão de vê-lo com asas...
(Este conto teve como co-autora Teresa Melo)