Friday, January 12, 2007

MAGIC GIRL

Posted by Picasa Ela tinha 1,57 de altura e pesava 72 quilos. Usava uma camisola branca, curta, decorada com um rosto feminino escrito Mágic Girl, em letras vermelhas. Despenteada e com os olhos inchados, olhou-se no espelho e sorriu para a imagem que viu refletida.Lembrando-se de que ainda não tinha escovado os dentes guardou o sorriso e abriu a torneira do chuveiro e deixou que a água escorresse por seu corpo.
Olhou pela pequena janela e viu o céu desperto numa manhã radiosa que prenunciava o nascimento da nova mulher a que se propunha ser. Para tanto, teria que vencer aqueles malditos quilos. A cada aproximação do fim do mês a promessa de que no mês seguinte cumpriria metodicamente os exercícios físicos e a dieta imposta pela nutricionista indicada pelo seu já desanimado endocrinologista.
Cantarolou o "que será, que será..." de Chico Buarque e pensou na alcova sempre vazia. Mas ia dar um jeito em tudo aquilo. Quilos a menos, caminhadas a mais, e surgiria a nova Elvira, sedutora e seduzível, como fora alguns anos antes com Alfredo, seu primeiro marido.
Enfiou-se no jogging, calçou o tênis e, porta afora, seguiu célere para o calçadão, misturando-se as que, como ela, buscavam o novo padrão ditado por estilistas homossexuais e politicamente corretos com seus proeminentes bustos, bundas ajustadas em apertados jeans, multicoloridas camisas e sapatos graciosos. Já se via como uma das giseles e naomis magérrimas. Mas vômitos estavam fora de sua cogitação, bem como jamais abdicaria dos gateaux da pâtisserie da esquina de sua casa, ponto obrigatório na volta do escritório.
Perdida em pensamentos, walkman embalando seus passos cadenciados ao som de "Boom Boom My Hearth", cruza com Mario, o ex-gato das tardes dançantes do clube. Finge que não vê, o que até poderia ser possível pelas grossas lentes que a miopia a obrigava a usar, mas impossível pela barriga ostentada e pelos ralos fios da outrora bela cabeleira que emolduravam o nariz grego perfeito daquele que fora a paixão da sua juventude.
Ao acordar, sentindo os efeitos da bebedeira da noite anterior, com a cabeça latejando, boca seca e lábios dormentes, ainda sob o chuveiro, Mário determinou-se a mudar de comportamento. A água que lhe empapava os poucos fios de cabelos que ainda lhe restavam, acumulava-se no alto da barriga e quase não atingia o órgão que, outrora, admirava com orgulho. Hoje, avistá-lo, só com o auxílio do espelho, objeto que ultimamente procurava evitar.
Enrolado na toalha, que praticamente não cobria a circunferência que se transformara sua cintura, retirou da gaveta a velha bermuda cáqui, o par de meias brancas com frisos vermelhos e pretos e uma camiseta com a estampa de sua marca de cerveja favorita. Providenciou óculos de sol para esconder as olheiras, colocou alguns trocados no bolso para a água de coco que sabia iria necessitar e foi para o calçadão como quem vai para a guerra. Era sua batalha pessoal que começava a ser travada: a partir de hoje, nada de noitadas regadas a cervejas e vinhos baratos, adeus aos torresminhos do “Sujinho” e: Piranhas chorem, eis que está nascendo um novo Mário!
Após três anos de viuvez, resolveu enterrar de vez a esposa e partir para a uma nova vida. Isso mesmo, uma mulher de verdade, com direito a jantar a luz de velas e às cenas de ciúme; que lhe proibisse de sentar no sofá quando estivesse suado, que reclamasse da toalha molhada sobre a cama. Uma mulher que, à noite, o cutucasse com os cotovelos, quando roncava; que implicasse com o cheiro do cigarro e com o bafo da bebida. Era disso que sentia falta: da mulher de verdade – cansara-se dos perfumes francês, made in Paraguai, comprados nos camelôs, das marcas de batons vermelhos no colarinho, de acordar em camas, cujos colchões ainda guardavam os cheiros de outros homens e de corpos que não se ajustavam ao seu.
O pensamento, voltando ao seu corpo de formas roliças e flácidas, remeteu-lhe ao calçadão, armado com o diskman, onde introduziu um CD de Louis Armstrong, iniciou sua caminhada.
Mal dera duzentos passos e cruza com Elvira. Fez que não a viu! Inacreditável como algumas pessoas têm a capacidade de se enfear cada dia mais. Lembrou-se das domingueiras, onde Elvirinha o perseguia. Magricela, míope e carente, ficava na “xepa”, aguardando os rapazes levarem um fora de suas prediletas e só então recorrerem aos seus favores. E ela ali, dócil, carente, disponível, consolava e consolava-se com poucos beijos na boca e amassos escondidos em algum canto mais escuro do clube. Mário também se consolara com ela quando fora preterido pela Miss Primavera e a partir desse dia Elvirinha encarnara nele, o perseguia com telefonemas, bilhetes e poemas.
Até que terminaram o colégio, ele fora para a Faculdade de Engenharia e Elvirinha passou a lecionar no próprio colégio de freiras, onde estudara. Anos mais tarde, Mário soube que Elvirinha casara-se com o ex-seminarista, Alfredo, que levava a pecha de homossexual, porque ajudava nas missas do capelão da escola, o qual era conhecido no meio estudantil por não resistir aos apelos masculinos.
As passadas agora eram mais curtas e lentas e ela começa a desconfiar que a meta de um quilômetro jamais seria atingida. Conforma-se e busca na observação dos caminhantes distrair-se das dores que começam a se manifestar na batata da perna. Esquecera-se do alongamento recomendado por D. Alzirinha, a vizinha do terceiro andar que tinha no Dr. Cooper um Deus, se bem que um Deus que não lhe proporcionara o milagre da elevação dos peitos e desaparecimento do culote. Mas, enfim, nem todo Deus é perfeito, pensava.
Seus batimentos cardíacos alterados jogaram-na num banco e por ali ficou a olhar João Ubaldo, o escritor, a perseguir um manquinho bem mais ágil, até que ambos desaparecessem de suas vistas com a vitória do manquinho por alguns metros.
“Arrastão! Arrastão!”. Os gritos vindo da areia coloca-a em sobressalto e lhe tira a atenção da loura coberta por um minúsculo biquíni. Já a vira na “Caras” e lhe pareceu com a mesma maquilagem exposta agora ao Sol. Corpo marombado em academia, a loura tinha ao seu lado um senhor de seus sessenta e muitos anos e, certamente, de alguns muitos milhões na conta bancária.
A correria generaliza-se. Mas não seria ela exausta como estava que iria fazer parte daquela maratona, entre freadas e buzinadas. À distância, vem vindo Mario, passo de cágado, levando-a à certeza de que, como ela, pousara em algum banco, antes de retornar à casa. E dá-se o encontro, com o arfante Mario sentando-se ao seu lado e massageando as pernas finas que lhe pareceram em desequilíbrio com o volumoso tronco.
- A violência nesta cidade está de um jeito que não encontramos um momento sequer para o nosso lazer...
O comentário não se perdeu no ar já que justificava para ambos o abandono de seus projetos. E foi fundamental para que começassem a falar do passado, matinês no clube, casamentos, com interrupções de “morreu” à lembrança de um ou outra dos saudosos tempos da juventude.
Foi quando os batimentos cardíacos de Elvira voltaram mais intensos ao repentino convite que se seguiu à interrogação do que ela faria naquela noite.
- Conheço um barzinho super agradável numa transversal de Botafogo onde poderíamos conversar com tranqüilidade. Sou amigo do dono e garanto um tratamento vip, com bebida e tira-gostos honestos. Se não tiver nenhum programa, passo em sua casa às nove. Está morando aonde?
Passou o endereço, angustiada de que ele viesse a esquecer. Despediu-se com um beijinho de cada lado. Naquele momento, efetivamente, sentiu-se uma magic girl. E foi para casa, com outras idéias na cabeça.
Quando a campainha tocou, Elvira ainda mergulhada em dúvidas mexia na gaveta de lingerie. Algumas ali estavam na longa espera em números menores. Num sobressalto, lembrou-se de estar sozinha, pois dispensara Conceição dos serviços antes de entrar no banho. A insistência levou-a a enfrentar a realidade de um peignoir sobre a pele e correr para a porta. Certificada de tratar-se de Mario pelo olho mágico, girou a chave, pedindo que lhe desse um minuto, entrasse e aguardasse no sofá até que acabasse de se arrumar.
A presença de Mario já na casa apressou a decisão sobre o conjuntinho preto de rendas que lhe pareceu simpático caso a noite se prolongasse. Apertou-se num jeans, uma camisetinha básica, enfiou o pé numa sandália, outra, mais outra, até certificar-se de ser a de tirinhas a mais sexy. Blazer creme realçando os adereços e pronto. O último olhar no espelho para conferir a maquilagem e partiu para sala deixando no ar o aroma do “Trésor d’Amour”, de Lamcôme, que lhe pareceu perfeito.
Sentiu-se uma deusa pelo olhar de admiração, dois beijinhos, um “oi, como vai?” e o “Vamos?”, com a segurança de ser a dona da bola.
A noite prometia e Mário, com a experiência dos anos de viuvez, percebia que não precisaria de muito esforço e dinheiro para ficar com Elvira. Pela maneira em que se arrumara e se perfumara a presa já estava no laço, era só apertar um pouquinho.
Ainda com o pudor adolescente de reencontrar amigos da velha turma, não colocou os braços sobre o ombro de Elvira, caminharam, lado a lado, pelo calçadão a procura de um táxi e quando o encontraram Mário deu o endereço do restaurante. Dentro do automóvel, colocou as mãos, amigavelmente, sobre os joelhos da companheira, sendo sutilmente repelido.
Oras..Oras...pensou. E essa, agora?Esquecido do regime e das determinações impostas pela manhã, Mário pediu um filé à parmegiana, acompanhado de uma cerveja preta, esquecendo a salada verde no canto da mesa. Elvira o acompanhou e não resistiu à sobremesa, nem ao café com creme, oferecido pelo garçom. Conversaram sobre o passado, evitando a parte constrangedora do relacionamento anterior, falaram dos falecidos, da rotina que os engordara e os entristecera, brindaram ao reencontro no calçadão e às promessas descumpridas.
Mário, mais por ser um cavalheiro do que por tesão, insinuou que poderiam esticar a noite em seu apartamento e ela gentilmente o liberou do encargo.
Despediram-se com um beijo no rosto e o velho cansaço nos olhos. Ao retirar a maquiagem e vestir a velha camisola, onde em letras coloridas lia-se Magic Girl, Elvira sentiu a necessidade de programar o rádio-relógio para despertar as 7h00 da manhã, a caminhada no calçadão a esperava.
Se tivesse olhado pela janela do apartamento teria percebido que Mário dispensara o táxi e dirigira-se ao boteco próximo. Bebia a primeira dose de um uísque enquanto olhava para as pernas bronzeadas e bem torneadas da mulher, de mini-saia justa e decote pronunciado da mesa ao lado. O olhar de desprezo da mulher trouxe a Mario a realidade do quanto necessitava se por em forma. Pediu a conta sem mesmo terminar a dose de uísque e foi para casa. Ao passar na portaria, uma solicitação ao vigia para que interfonasse às 7h00, pois retornaria à meta dos menos 15 quilos.
Numa olhada para trás, viu Elvira aproximando-se. Diminuiu as passadas até que ela emparelhasse e seguiram firmes em seus propósitos.

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