Seu António, homem de pouco saco e muita farinha, conforme se dizia à boca pequena, no bairro, é caladão, tem hábitos severos e goza de respeito temeroso em toda a vizinhança. Pai de duas filhas que com homens só viveriam se casadas de papel passado no cartório e na igreja, segundo vive repetindo. Jamais permite que Aurora, sua mulher, se ponha à janela, nem mesmo quando as duas vizinhas, Margarida e Hortênsia, flores de reputação duvidosa na sua avaliação explodem em imprecações nas brigas domésticas.
- Lugar de mulher é na cozinha...
E é onde dona Aurora se enfia com os primeiros raios do sol, em meio aos temperos, cujos aromas chegam à sala de jantar do sobrado do doutor Adamastor, que doutor não é, título emprestado ao homem pela elegância no trajar e trejeitos que dão o que falar aos vizinhos.
Seu António, mesmo rico, só aceita comer o que a mulher prepara. Uma escrava submetida às ordens do Senhor, pensam as filhas, também elas submissas às exigências medievais do pai.
Com a chegada do carnaval, Aurora, mulher de grande fé religiosa, vai para um retiro. Apesar dos protestos, leva as duas filhas, que só acabam cedendo por saber que rapazes da congregação dos moços também lá estariam.
Um dia, na leitura do jornal, Seu António, que jamais tinha lido um horóscopo por desacreditar deles, decide dar uma espiada e lê: “Momentos divertidos virão, novas amizades lhe trarão infindáveis prazeres. Use roupas coloridas e muitos dourados...”.
Pensa em Etelvina, mulatinha sestrosa, candidata a Rainha da Bateria do Bloco Unidos do Cabuçu, em escalada para chegar a Marquês de Sapucaí num futuro próximo que se prenuncia pelas atenções do bicheiro André Brilhante.
Recolhe no armário uma camisa roxa desprezada, a calça vermelha presenteada pelas filhas e jamais usada, a faixa dourada usada pela mulher com um grande laçarote na festa de formatura da filha mais velha e. Pronto! Joga tudo numa sacola e segue para o Catumbi, bairro vizinho onde mora o amigo da juventude Oriovaldo, solteirão e farrista incorrigível. Lá se dará a transformação e surgirá o Antônio horoscopiano para cumprir os desígnios dos astros.
Olha-se no espelho e não se reconhece. A princípio, sente-se ridículo, mas a imagem que vê de certa forma o agrada, pois é ela que romperá os grilhões de uma vida que muitos apontavam como careta. Convidado por Oriolvaldo, parte para o Bar do Juca, para umas cervejotas antes do que se promete uma esbórnea carnavalesca.
E acontece que na caminhada ao bar, Seu António cruza com a mulher de saia rendada, grandes argolas nas orelhas, rugas cruzando a face. Uma cigana! Que insiste em ler sua “sorte”, pouco lhe custaria. Constrangido, tenta se esquivar. Detesta ciganos, julgando-os todos vagabundos e ladrões. A mulher implora... Oriovaldo apela:
- O António, deixe que a mulher leia sua mão. A cigana precisa comer...
Desvia-se dela, se apressa, ainda ouvindo, a mulher que o persegue repetindo,
- Sua sorte vai mudar, miserável...
As palavras ainda ressoam... Entra no bar... Precisa beber alguma coisa mais forte que uma simples cerveja... Súbito, o bar se enche de mascarados coloridos como ele e íntimos de Oriovaldo. Fica confuso com a atração que o grupo exerce sobre ele. Nem saberia dizer como participa agora do troca-troca geral e anônimo no entra e sai do banheiro... Mas a sensação é de prazer jamais sentido... Prazer intenso, prazer só agora descoberto, prazer como nunca antes lhe fora dado sentir...
Volta à mulher com as filhas e com elas, a rotina da casa. Não a dele. Percebe agora quanto se vestia mal, sequer tinha perfumes. E se dá conta do vizinho, Dr Adamastor, sua elegância, sempre cheiroso, homem requintado... Tem sonhos eróticos onde o vulto do doutor se confunde com tantos outros invisíveis dos troca-trocas da noite de carnaval. Revira-se na cama, é intenso por demais o desejo, desejo que é dor, dor que é desejo...
Não se intimida e aproxima-se de Adamastor. Aconselha-se sobre melhores flagrâncias, alfaiates, nomes de estilistas, chegando às minúcias dos anéis. Aurora surpreende-se a cada entrada com sacola estampando nome de grifes famosas. Pensa em Etelvina tão citada pelo marido e teme pela solidez de seus mais de 20 anos de casamento.
A vida segue e a vizinhança tem agora dois doutores. Gentis e elegantes cavalheiros, amigos inseparáveis nas idas à academia. Contratam o belo jovem Alfredo como personal training. Agora é cuidar da alma, pois o corpo está entregue a Alfredo, que se divide entre um e outro.
* * *
O médico plantonista atende:
- Que outros sintomas acusa? Terei que pedir vários exames para um diagnóstico preciso.
Envergonha-se em ter que falar de sua vida sexual.
O médico constata o desespero do homem curvado pela dor, pálido, suando de dar dó, os olhos baixos, ar de constrangimento, como se desculpando por estar ali...
Leva-o à sala de exames, chama a enfermeira. Antes que chegasse, ele implora:
-Por favor, doutor, pelo amor que tem a seus filhos, só o senhor...
Ele não tem filhos, sequer é casado, mas atende ao pedido, dispensa qualquer ajuda, examina o paciente e encerra a consulta com a solicitação de um exame completo de sangue. Nenhuma pergunta mais. Preenche a ficha, escreve algo de modo a não comprometer o paciente.
Chega o resultado do exame: é portador do vírus HIV.
Seu António está confuso.
- Fui sempre um homem severo demais com as fraquezas humanas, doutor. Deus me puniu. Ou me atingiu a maldição de uma cigana. Não sei dizer. Procurei ser sempre digno e honesto, doutor. Gosto da minha mulher, adoro minhas filhas... Jamais suspeitei de qualquer tendência homossexual. Creio que ninguém da família também. Peço-lhe que seja discreto. Assumo sozinho. Sou um homem rico, doutor. Precisando de alguma ajuda, conte comigo. Não interprete como corrupção. Gratidão apenas...
Seu António pensa nos mascarados, em Adamastor e Alfredo. Qual ou quais? Como alertar os dois últimos do mal que começa a consumi-lo? Só então lhe ocorre a frase final do horóscopo: “mas não exagere nos seus prazeres durante o carnaval. Use a camisinha”.