– Oi...
– Vamos teclar...
Iniciava-se ali uma experiência inesquecível. Pelas coordenadas que iam sendo dadas, fui construindo letra por letra o desenho mágico da mulher loura virtual, belos olhos azuis, boca sensual emoldurando dentes perfeitos. O corpo... Ah! O corpo... Pelos números fornecidos, não tinha como me enganar: uma sarada freqüentadora das academias: 52 quilos distribuídos em 1,70 m.
As emoções se acumulavam nos fraseados de parte a parte, até que, inseguro por achar que poderia estar sendo invasivo, sugeri um jantar.
Recatada, aceitou, cercando-se de alguns cuidados. Natural que assim fosse. Afinal, tão bela mulher iria encontrar-se com um homem sobre o qual apenas sabia ser um virtual gentil de razoáveis escritos. Muita exposição colocaria em risco suas reais qualidades. Assim, creio, pensava...
Sugeri um restaurante de cuja janela tivesse a visão do colar de lâmpadas da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.Sugestão aceita, parti para os preparativos, com reserva garantida de mesa à, luz de velas, "Lanson" no gelo e o esmero na recomendação ao maître: que o Belluga se fizesse acompanhar de delicados e honestos blinis para que tudo transcorresse de forma a tornar a noite perfeita.
A cada carro que chegava, meus batimentos cardíacos mais se aceleravam. E temeroso que o calor neutralizasse o "Silences" borrifado no blazer que disfarçava os malditos quilos a mais, solicitei que aumentassem um pouquinho mais o ar-condicionado, mesmo diante dos olhares furibundos da senhora de uma mesa próxima já tiritando de frio naquela noite de junho.
Agora sim, era ela. Os louros e longos cabelos contrastavam com a negritude do interior do carro importado. Em passos firmes caminhou na direção da porta, fazendo-me levantar com um largo sorriso.
Não, não podia ser... Mas era.
Todos os olhares convergiram para a figura que acabara de chegar. Uma onda de calor deve ter envolvido a vizinha antes tiritante pela alegria na minha derrota.
Diante do ET que chegara, alguns devem ter imaginado um OVNI na porta do restaurante.
Bem, do virtual para o real, o salto tinha sido olímpico. Dos 52 quilos, era certo que 42 estavam na barriga e no busto. Os olhos azuis haviam marcado um encontro naquele rosto, mas se desencontraram, indo um para cada direção.
Pedi a Deus que me enfartasse. E que fosse fulminante, pois o maître se aproximava para espocar o champagne, o que chamaria ainda mais a atenção dos clientes distantes. Havia súplica no meu olhar para que não o fizesse. Tarde demais.
Diante do inevitável, deixei-me afogar num copo duplo de uísque numa talagada só, antes do brinde.
Homem educado pelos ensinamentos do meu pai de que o bom jogador se revela na derrota, deixei que a noite corresse, já que eu mesmo não tinha mais condições de fazê-lo. Se não pela educação que recebera, mas pelo estado de semi-embriaguês em que já me encontrava.
E a hiena ali na minha frente a mostrar os dentes inegavelmente perfeitos que me induziam a imaginar que estivessem presos com "Corega". Acrescente-se um mastigar interminável. Diria secular.
Impor-me maior sofrimento do que já vinha tendo só se com a intenção da absolvição plenária das penas do purgatório que tanto fiz por merecer. Pedi a conta. Entre salamaleques, o maître esticou-me o papel: 698 reais.
E foi quando me bateu no ouvido tal qual um "telefone" do DOI-CODI a sugestão:
– Que tal esticarmos...
Entre os dentes, fugiu-me a frase: "Esticar só se for no asfalto...”.
Traíra-me o inconsciente e já me via cercado por passantes curiosos, cobertos por plástico preto, iluminado pelas velas trazidas de mesa do restaurante.
Acredito que ela não tenha escutado tal indelicadeza, mas a idéia avançava na medida exata em que automóveis e ônibus passavam em velocidade. Se Deus me poupara do enfarte, quem sabe?...
A noite fora lenta e longa.
Reuni o resto das minhas forças nos dois beijinhos de despedidas. Nesse momento pensei em minha mãe a olhar-me de uma das galáxias que por certo habita, orgulhosa dos ensinamentos.
Dois espirros coroaram a noite. O ar-condicionado ainda por cima me gripara...
1 comment:
Real?
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