Sim, pode um dia voltar do coma, esclarece compassivo o médico. Há casos e mais casos... São boas as possibilidades. Mas, certeza? Nenhuma... E voltando à consciência, pode perder a memória elétrica, e a química, registradoras de fatos recentes e de pouca importância. Mas a memória protéica, guardadora de tudo que é importante no transcorrer da vida, será preservada. Trate-o bem, o corpo tem imprevistas e surpreendentes reações. Está bem, fisicamente, as fraturas se consolidaram. Louvo sua decisão de levá-lo para casa. E, precisando, ligue... Deixe-me sempre a par do estado dele...
Lembra bem as palavras do médico... E do fatídico dia em que o acusara de beber demais e engraçar-se com as amigas... Acusação feita na hora mais imprópria, quando, já embriagado, fora para o carro, saindo acelerado... E a tragédia, vizinhos socorrendo-o das ferragens retorcidas do carro imprudentemente dirigido, ele próprio destroçado, olhos vidrados, insensível a qualquer manifestação de dor.
Começavam os dias cinzentos... Que se prolongariam por meses, sempre no empenho de devolvê-lo à vida, torná-lo útil a si mesmo. Se não plenamente, que fosse de tal modo que a mente voltasse ao comando daquele corpo, agora massa inerte. Mas não no leito de um hospital. Cuidaria do marido, ela mesma... E pediu aos enfermeiros que o colocassem na mesma cama onde tanto se haviam amado.
Não fora fácil a decisão de levá-lo para casa. Poderia o carinho compensar as eventuais falhas da terapia? Mas de que outro modo se redimir do mal que lhe causara, levando-o ao estado em que se encontra? A consciência de que perfeição inexiste, de que o lado mulherengo do marido quase que se anulava diante do brilho profissional, do amor e proteção à família, da honestidade no trato comercial, de tantas outras boas qualidades que não soubera ver, só viera ao longo dos dias depois do acidente. Fora cega, obcecada pelo ciúme doentio. Fora ingênua e desavisada ao supor a natureza masculina similar à feminina... E o transcorrer dos anos, o suceder de litros de soro consumidos, fisioterapeutas e enfermeiros tornados rotineiros, especialistas consultados... E sua própria existência se desvanecendo... Qual o preço da redenção? O abandono de seus próprios projetos de vida? Bem verdade que voltara ao trabalho, algumas horas ao dia, terapia para si mesma, mas sempre atenta a uma má notícia... Nas raras saídas com as amigas, a sombra do marido sempre projetada sobre todos, matando qualquer manifestação de alegria... E os sentidos pedindo o que já não pode dar... Geme abraçada a travesseiros amantes... Nos sonhos, desejos aflorando... E a desesperada busca de uma expressão facial, um movimento ainda que espontâneo dos membros. Mas nada. Nada que demonstrasse uma melhora no seu estado mental.
E teria sido mesmo uma boa medida levá-lo para casa? Ouve as amigas dizerem ser comum, diante de um quadro julgado irreversível, o aconselhamento dos médicos para que levem o doente, respondendo às pressões dos planos de saúde. De alguma forma, fora convencida sem que se desse conta?
Sente que a vida lhe escapa pelos cabelos que embranquecem rapidamente, pelas rugas no rosto ainda jovem... Não lhe sobra tempo nem disposição para idas a cabeleireiros, academia de ginástica, às compras... Um erro ao assumir as obrigações onerosas e desgastantes de um tratamento que lhe parece agora infrutífero.
E o novo neurologista, mais uma avaliação, conhece novas e diferentes terapias... Que lhe transmite esperanças. Mas impossível precisar... Poderá permanecer por muito ou pouco tempo no seu sono... Ou morrer a qualquer momento... Mas poderia, sim, repentinamente, acordar, respondendo ao tratamento. Melhor que não mais se culpe, leve-o a passear, a manter contato com o mundo lá fora, mas atenta aos riscos, a um pronto atendimento nas emergências... Voltará diariamente, acompanhará passo a passo à terapia, tem interesse humano e científico.
E sucedem-se as visitas, já não mais voltadas exclusivamente ao paciente, pois há mais, muito mais... Estão a cada dia mais próximos, descobrem-se afins, querem esticar o tempo das visitas, tempo que se encolhe quando juntos, longo por demais quando se aguardam, sentimentos em crescente sintonia... Há o não confessado afeto tornado plataforma sobre a qual se movem... E ansiosos se esperam, se fitam silenciosos, se querem bem, se desejam e não se têm... O clamor dos corpos versus a recusa da consciência... Pouco a pouco, os momentos cinzentos da tristeza vão se misturando ao dos culpados da alegria...
Não, ela não quer que morra, do mais profundo da consciência, não quer. Quer que acorde, que se recupere, que volte a ser o homem sedutor, exagerando nos drinques e nas gentilezas com as mulheres. Sabe que não voltará a amá-lo, contudo não deve perder o senso da responsabilidade e da decência. Mas poderá o querer da razão vencer o fogo da paixão?
Balbucios chegam do quarto, encontra-o acordado... Não, não está sonhando... Todo o seu empenho agora são conflitos. Trouxera-o à vida... Virão os primeiros passos... As primeiras palavras. Mais precisará dela, já agora dividida em duas recuperações, a dele e a dela própria, redescoberta no amor ao homem que a ajudará por tantos meses a repor a vida naquele corpo até minutos antes inerte que acabara de chegar.
Terá um logo tratamento, vai precisar de muita dedicação, mas é certo que voltará à vida normal. Assim as palavras do especialista, do amante, do homem que trouxe luz aos seus dias sombrios... E que se retira silencioso, entra no carro, parte e, mergulhado na tristeza da separação, não percebe que entra na contramão... E a tragédia, motoristas arrancando-o das ferragens retorcidas do carro imprudentemente dirigido, ele próprio destroçado, olhos vidrados, insensíveis a qualquer manifestação de dor...
Sim, pode um dia voltar do coma, esclarece compassivo o médico. Há casos e mais casos... São boas as possibilidades. Mas, certeza? Nenhuma... E voltando à consciência, pode perder a memória elétrica, e a química, registradoras de fatos recentes e de pouca importância. Mas a memória protéica, guardadora de tudo que é importante no transcorrer da vida, será preservada...
(Co-autora Maria Ilsen)
|
No comments:
Post a Comment