Com seu inconfundível jeito apressado, caminhava pelo calçadão, preocupada com mais um atraso e mais uma provável repreensão patronal.
Chegava a ser cruel a forma como era tratada. Nada profissional, nada legal, nada convencional. Nada convencional... não precisamente. O que seria um tratamento convencional num mundo cheio de valores díspares, onde um pensa que é branco o amarelo que o outro mostra? Era assim dr. Ercílio. Suas regras, sempre mutante, eram normas de existência fugaz. Quando dizia é aquilo, já era outra coisa que queria dizer.
Em exercício de verdadeiro equilibrismo, permanecia no emprego. O salário era o bastante para sua sobrevivência e já não se recordava de alguma coisa que pudesse dar-lhe alguma alegria, além das intermináveis horas de navegação virtual. Sair de casa já era um tento!
E naquele dia ia contando os buracos a serem ultrapassados no calçadão, maneira de se concentrar e abstrair, de antemão, da voz esganiçada do patrão, que sempre dizia em ironia: "O atraso... arranjou um namorado?". Ele sabia que isso a fazia afundar-se no mais central do mundo, no miolo do planeta, destituída de toda sua identidade.
Não adiantaria exigir respeito.
A única forma era a demissão. Isso ela não queria. Não suportaria ficar recortando pedaços de jornal, aqueles ridículos quadradinhos e retângulos, com exigência de boa aparência, domínio de línguas, perfeita utilização de um computador. Quantos Ercílios se esconderiam atrás desses recortes?
No fundo, não tinha clareza se permanecia no emprego para redimir-se das mágoas que carregava por um casamento que há muito havia terminado. E se na sua busca por um novo emprego, justo na mesa do diretor de recursos humanos, se deparasse com ele? Não suportaria tal enfrentamento, não estava preparada, ela carregava a culpa pela separação. Sim, ele ameaçara mostrar ao dr. Ercílio as cópias de mensagens trocadas por ela, em suas intermináveis noites de casada, sem amor, sem prazer, com quantos quisessem uma aventura virtual.
Em meio ao turbilhão de buracos e pensamentos sentiu uma pontada na cabeça, forte, que como um raio a fez tontear e antes que chegasse ao chão, sem sentidos, pôde ver a pasta de onde saltou um livro que se abriu ao seu lado.
A sensação era de torpor ainda, quando percebeu um círculo de pessoas ao seu redor e junto de si o livro. Alguém o pusera ali, imaginando que fosse seu. Instintivamente o colocou na bolsa e, tonta ainda, afastou-se do burburinho, em direção à mesmice de todos os dias: "O atraso... arranjou um namorado?", do dr. Ercílio.
O que mais lhe doía é que aquele homem sabia das circunstâncias de seu divórcio, da solidão a que se impôs, amenizada, apenas, nas salas de bate-papo da Internet, até que o sono a derrubasse em cima do teclado do computador.
Deixara o tempo correr. Não tinha forças para alterar essa vida insípida que havia tomado conta de seus dias. Latejava-lhe a cabeça, latejava-lhe a vontade de mudanças, apenas.
"O atraso... arranjou um namorado?". À pergunta enfadonha e chata do dr. Ercílio, respondeu mecanicamente: "Sim, arranjei um namorado". Se soubesse que teria de apagar definitivamente a luz da telinha do micro, fazendo macro os amores reais e não mais crer nos prometidos por nuvens passageiras do mundo virtual!
E, assim, perdida em seus pensamentos, lembrou-se do livro que chegara pela marca na cabeça, muito mais externa que interna. Pegou-o na bolsa e folheando-o se deparou com um capítulo chamativo: Sexo na Net, amor à parte. Ah... mais uma vez dicas de comportamentos impregnados pela linguagem binária do micro analógico. Como em leitura dinâmica, varreu rapidamente as dicas do livro.
Sexo era do que mais precisava. E cachola a pulsar, circulação acelerada pelo galo e pelo livro, sentiu vontade da noite que era preenchida pelo barulho do teclar e por carícias no mouse. Na monotonia do trabalho que lhe pareceu sem fim, decidiu-se. Aquela noite seria diferente. A fatalidade que a adormecera no rápido desmaio iria ajudá-la a despertar, fazendo aflorar seus instintos para relações reais que já começavam a ser esquecidas.
Ligou o micro, colocou sua senha, floripes1, entrou na sala com seu nickname Floripes2 e aguardou ser abordada.
Oriovaldo para Floripes 2: Oi... Quer tc?
Floripes2 para Oriovaldo: Podemos. De onde tc?
Oriovaldo para Floripes2: Só digo se vc responder... vc tá de calcinha?
Floripes2 para Oriovaldo: Sim.
Oriovaldo para Floripes2: Conta, conta como ela é. Tira, tira, tira ela!
Floripes 2 para Oriovaldo: De algodão macia, verde limão e elástico frouxo.
Oriovaldo para Floripes2: Vc tá gozando da minha cara!
Floripes2 para Oriovaldo: Tô não. Tô falando sério.
Oriovaldo para Floripes2: Quer fazer sexo com um homem gostoso, que cobrirá vc todinha de beijos, começando pelos pés, levando vc ao céu?
Floripes2 para Oriovaldo: Ah... legal. Onde?
Floripes2 para Oriovaldo: Vc caiu? Travou?
Oriovaldo para Floripes2: Oi... amor. Tava aqui, olhando vc.
Floripes2 para Oriovaldo: Então... onde?
Oriovaldo para Floripes2: Aqui, bobinha... minha amoreca.
Floripes2 para Oriovaldo: Vc quer? Eu quero. Mas aqui não, meu amoreco.
Floripes2 para Oriovaldo: ...
Floripes 2 para Oriovaldo: ...
Oriovaldo para Floripes 2: Diga amor. Vc não respondeu...
Floripes2 para Oriovaldo: Já, sim. Conhece um bom motel?
Floripes 2 para Oriovaldo: ...
Floripes2 para Oriovaldo: ...
Oriovaldo: sai da sala.
Era sempre assim. Há meses vinha experimentando essa sensação de inacabado. Brincadeira de gato e rato. Esse Oriovaldo sempre a abordava, sempre dessa forma, caindo sempre, sempre se esquivando.
Mas os ensinamentos do livro diziam que não sofresse com as quedas e saídas repentinas. O ambicionado sexo chegaria e quem sabe? com ele o amor. E lhe pareceu, algumas mensagens adiante, que havia chegado:
Mensageiro do amor/1.78m/72k. Já nas primeiras frases, soube ser moreno, engenheiro, master pela Universidade de Filadélfia, separado. Era tudo quanto precisava naquela noite. Não que se revelasse um Apolo entre tantos de mais de metro e noventa, freqüentadores de academia. Mas já nos primeiros escritos, a elegância no uso das palavras. Não havia dúvidas, era um homem de "bom tom", como sempre sua mãe dizia, na seleção dos futuros genros.
De parte a parte o mistério, até que já clareando o dia, a sugestão do encontro. Acertado o local, a roupa que os identificaria. Lembrou-se do vestido de decote bem cavado e que tão bem lhe marcava as formas, pois estas, inegavelmente, ainda as tinha bonitas. A noite insone, de certa forma, ajudou-a. Deu-lhe a pontualidade e um ar permanente de felicidade.
O que nem foi notado pelo dr. Ercílio pois, tão logo sua pontual chegada, escutou mais uma vez: "O atraso... arranjou um namorado?" Dessa vez, não ligou. Não desceu ao fundo, não escorregou ao miolo da terra. Simplesmente ignorou-o. Mas a noite que se ia próxima tirou-lhe a atenção do serviço pela ansiedade e expectativa do encontro.
Retornou a casa, banhou-se, buscou entre os poucos perfumes o que lhe pareceu o de maior sensualidade, vestiu a lingerie ainda guardada na embalagem. Uma lingerie que prometera a si mesma que seria usada para o homem que mais a extasiasse no mundo virtual para que fosse retirada no real. Só faltava o vestido. Os dois quilos a mais arrochara-lhe, mas aumentara a sensualidade, com os seios a descobrirem-se mais um pouco no decote. Floripes2 estava pronta para o Mensageiro do amor. Por cautela, pegou o livro.
O local escolhido tinha o clima perfeito para o encontro. Aconchegante, o som de um piano suave com "Strangers in the night" inundando de romance o ambiente. Os primeiros passos incertos pela penumbra, aproximou-se do homem solitário de costas para a entrada, tocando seu ombro quase como um afago.
– Floripes?
– Dr. Ercílio!!!!!!!!
No espanto, ficou o livro sobre o chão.
(Co-autoria de Adriana Gragnani)
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