Thursday, November 10, 2005

A DESPEDIDA




Dirige-se à estante, o olhar perdido entre o amontoado de recordações e lá está a caixa, o ossuário de amores vividos e perdidos, fragmentos da vida que vê esvair-se a cada despedida. Sobre a mesa, ainda a última carta, escrita minutos antes. A incredulidade mistura-se às lágrimas, embaçando a própria vida...E a palavra adeus surgindo como abstração de si mesma, da conflituosa existência... Carta tão igual a tantas outras em esfarrapadas explicações e justificativas pelo amor que finda... E que a deixam assim, frustrada, sensação de derrota, de inutilidade... Tantos os homens que tinham estrado em sua vida e assim a deixam...Espalhados na solidão cinza do quarto, os objetos marcas das paixões...

Absorta, abre a caixa de lembranças...O que busca? Quem sabe arrancar das fotos o homem que a deixa agora, o homem definitivo, chegara a pensar, desde a noite em que, após tantos desenganos, chegara à solidão da mesa de um bar. Fora gentil na aproximação, romântico na aura de ligeiramente embriagado. E a noite se estendera pela madrugada e por outras noites e madrugadas. O amor preenchendo espaços, curando feridas, novamente a esperança, depois de tantos projetos frustrados no mundão da capital, a rota do seu destino, vinda da pequena e pobre cidade do interior. Tantas as quedas...

Guarda a caixa. E vai à janela atraída pelo piscar do anúncio. O mesmo que em tantas noites, em exóticas fantasias, dera o ritmo luminoso aos movimentos do amor, entre gemidos e sussurros, no cenário de sensações eróticas. Tantas as vezes em que, com risadas zombeteiras, escancaravam a janela e se propunham a fazer amor na provocação ao vizinho voyeur do prédio em frente.

Na cozinha, o aroma do café denuncia que há apenas alguns minutos o perdera... Para sempre? Tinha amado aquele homem, sem cobranças, sem questionamentos, tudo tendo que ser e sendo, como o passar das estações, dos crepúsculos, das noites enluaradas... Juntos tinham estado integrados nos pensamentos, sentimentos e corpos. Uma exacerbação.

E se lembra do rosto bonito, da tristeza velada, do olhar intenso posto nela, o Universo desaparecendo, restando apenas eles, os dois, no momento mágico...Das mãos que lhe percorriam o corpo, querendo a um só tempo afagar e invadir. Atavicamente. Como o homem troglodita arrastara um dia a mulher desejada ao fundo da caverna.

Uma luz que se apagara? Não, não seria um amor passageiro, ousara pensar, amor assim tem que ser para sempre, sem que a própria morte apague, porque amor além dos corpos, transcendendo, algo místico, o inexplicável. “Onde existe luz, existe sombra...”, dissera Sidharta Gautama, o Buda. Aos momentos da paixão iluminada, tinham-se seguido as sombras do abandono?

No toque da campainha, o sobressalto. Joga sobre o corpo o roupão. Para trás das orelhas, o cabelo desalinhado. Busca um sorriso no rosto de tantas marcas, abre a porta. Diante dela, o homem se explica, vem atender ao pedido aflito... Busca coordenar os pensamentos. Pedido aflito? Parece médico no branco das roupas, a maleta, o mesmo jeito do médico bondoso da infância, e que lhe curava as dores... Não entende. Mas sabe. Já o vira antes. Onde? Estranho que surja no momento de que tanto precisa. Sim, mora em frente. Atenderia ao chamado, passaria na volta, claro, aceita tomar um café, comer alguma coisa, sequer fizera o desjejum, na pressa do atendimento... Conversariam. Errara o número do apartamento de onde tinham chamado. É médico.

E volta outras vezes, tantas, conta sobre as dificuldades com a ex-mulher, a separação traumática, filhos longe. A saudade da criançada...E sim, é o voyeur do apartamento em frente, e a vira, sozinha, parecendo angustiada...E inventara o chamado, um modo de ajudar... Tantos os retornos, muda para junto dela, tão grande o apartamento, reconstruiriam a vida sentimental dilacerada por tantas frustrações... E sob o ritmo do piscar das luzes do anúncio luminoso... Sob olhar do novo voyeur... O calendário se desdobra...

Absorta, sequer abre a caixa de lembranças...O que busca ali? Quem sabe arrancar das fotos o homem que a deixa, o homem definitivo, chegara a pensar, desde a manhã em que, pretextando engano, a encontrara angustiada após mais uma despedida...Médico bondoso da alma ferida... A manhã se estendendo em outras manhãs...Em dias e noites... O amor preenchendo espaços, curando feridas, novamente a esperança...Até que...A carta...Que sequer lê...Vagarosa, engolindo as lágrimas que persistem, despe-se maquinalmente, abre a ducha, deixando que a água escorra pelo corpo e pela carta, como a se lavar das nódoas da vida. Purifica-se.

Ao toque da campainha, o sobressalto. Joga sobre o corpo o roupão. Para trás das orelhas, o cabelo desalinhado. E buscando um sorriso no rosto de tantas marcas, abre a porta. Diante dela, o homem se explica, é encanador, mora no apartamento em frente ao dela, vem atender ao chamado de urgência...


Chamado, que chamado?


No comments: