Maestro enchia as ruas de sons e aquilo me parecia mágico. Eu o seguia maravilhado e, a cada parada, Maestro era cercado pelas mulheres em maioria. O que as fazia acreditar no que liam era a esperança de que sonhos se realizassem. Maestro não usava casaca, mas uma camiseta abotoada, sem gola, de mangas curtas nos invernos e verões. Nem mesmo a lama que escorria entre seus pés em dias de enxurrada tirava-lhe a dignidade. Seus sons despertavam manhãs floridas pelos flamboyants na primavera, como os pássaros dos quintais da minha infância. A caixa a um ombro, o papagaio no outro: trindade – Maestro, papagaio e realejo. Não conhecera o pai, não tivera filho, ninguém lhe sabia do espírito. Em terra de santices e santidades era agnóstico e não sabia. Cria no que via. E bastava-lhe o pão de cada dia e os regalos de quireras ou luxos de sementes de girassol para Valdemar, papagaio chegado de Mato Grosso depois da viagem feita pelo cunhado, em tempos de aboiar. – Tire a sorte da moça bonita, Valdemar. O companheiro entrava na caixa, sondava com o bico. Não mais que dez segundos e tremia Efigênia, suspirava Antera, afoitava-se Belinha. Efigênia derramava-se pelos olhos – ali não buscava apenas sonhos, mas o olhar vindo em mão-dupla; Antera miudava na paciência – não deixava um dia de acercar-se e aguardar que lhe chegasse a vez. E, enquanto os olhos das duas grudavam nos de Maestro, Belinha seguia o bico de Valdemar, cantarolando a música que vinha da caixa. Ritual findo, quedavam-se desassuntadas as primeiras, enquanto Belinha fincava-se nos saltos a barulhar praça afora ou praça adentro: – Papagaio de uma figa, “Maestro” de meia tigela, tirar a sorte no realejo é só pra quem é besta... Ainda faço canja desse papagaio... Mas vestia-se de roxo, carmim, cor que lá fosse determinada pelos ditos do bilhete, que lhe prometia a sorte vinda no bico de Valdemar, mas que conferida no poste nunca chegava. Jogava no touro e dava veado. Sorte contradita. O bicho não dava, o amor não chegava, só os vestidos se multicoloriam na gastança dos tecidos adquiridos no armarinho de seu Murad. Tinha-os de todas as cores e era de fato no que se apegava para ver se a sua vida mudava. Numa quarta-feira de cinzas qualquer, o trem descarregou na pequena São José do Limoeiro um moço bonito de assanhar moças de prendas. Nas domingueiras, risinhos em histeria a cada gingado do moço e deitação de falas no confessionário. Pecar mesmo não pecavam, não por falta de vontade, mas pela tentação de quem com elas pecasse. Mas ali estava agora Gumercindo, fruto para ser colhido. E haja bilhete da sorte para ver a quem ele caberia. Fiéis a Maestro, Efigênia e Antera ainda assim não deixavam de pensar em Gumercindo, coisa pouca, é bem verdade. – Capricha na sorte das moças bonitas, Valdemar.Maestro acompanhava o movimento do papagaio, o desdobrar do papelzinho e sondava os olhos das consulentes. “Um forasteiro fará sua felicidade”, “Pense no peregrino”, “A chama do chamego é do recém-chegado”, aliteravam os bilhetes. Toda noite, debruçado sobre a mesa, Maestro caprichava nas sortes. Só faltava escrever: “Grude no Gumercindo!”. Acontecia-lhe de já incomodarem os fricotes da dupla, ele, que só tinha a batuta em riste para a decidida Honorina, que diziam dormir de borzeguins.Saíam as duas a trocar sorrisinhos e ele via de longe o chapéu de Gumercindo desabando-se em cumprimentos. Sorria para Valdemar, esperançoso. A ave queria retribuir-lhe o sorriso, mas eis que chegava a vez de Belinha. – Valdemar, se afoite e veja se traz sorte para D. Belinha.No balançar da cabeça de Valdemar e lá vinha o bilhete, recomendando jacaré no bicho, azul nas sedas e sorrisos tantos quanto possíveis a quem tinha como meta. Já agora, Gumercindo ao largo, esmerava-se na escolha da lingerie. Pois que se fosse por vontade divina, quem sabe... E de bico em boca e de boca em bico, assim se perpetuaria esta história como tantas outras em tantos São Josés dos Limoeiros. Mas como bem se diz que o bater da asa de uma borboleta altera o rumo de todas as coisas, em manhã de grande ventania Belinha contrariou os escritos de Valdemar e jogou na borboleta todo o dinheiro que tinha na caixinha. Ato contínuo, trancou-se em casa, porta e janelas cerradas. A notícia correu a cidade – Belinha ensandecia! Os vizinhos relatavam barulhos estranhos de rasgar de sedas e resmungos de longas ladainhas. No final da tarde, deu no poste – borboleta na cabeça!Nunca se ouviu tanto troc-troc de saltos pela praça. Maestro elevou o som do realejo, ‘seu’ Murad alisou as peças de seda e os ditos de merinó, Gumercindo emparelhou o passo com os de Belinha. Ao largo de tudo, braços dados, Efigênia e Antera despejavam olhares mais que suspeitos em direção a Valdemar.Naquela noite Maestro acordou com Valdemar em seu travesseiro, a engrolar falações: pedaços de cantigas, parlendas, pragas. E do bico lhe escorria uma baba fina, leitosa, que Maestro tentava estancar, suportando as bicadas. – Psitacose – foi o veredito do boticário. Prenda o bicho na gaiola e deixe no fundo do quintal, lave a casa de alto a baixo com formol. E reze. Maestro estranhou o ar avexado – nem atinava fosse o boticário tão apegado ao bichinho – mas a única recomendação que seguiu foi a da reza. Dois dias depois Valdemar foi enterrado no quintal em uma caixa de papelão, tendo ao lado o realejo. Honorina logrou retirar, à última hora, a batuta que também se ia junto ao féretro e fincou-se ao lado do travesseiro de Maestro, que engrolava falações: pedaços de cantigas, parlendas, pragas. Dois dias depois, foi coisa triste de se ver. A bandinha do coreto nas tardes alegres de São José do Limoeiro gemia seus sons na batida do bumbo ritmando a Marcha Fúnebre. De negro, Honorina logo atrás mostrava a palidez só encontrada em rosto de viúvas. Seguiam-se lado a lado Antera e Efigênia em rezas altas, Murad sempre solícito consolava Belinha, sob os olhares de Gumercindo. Depois, uma multidão de 50 contritos limoenses, que mais a cidade não comportava. Havia sobressalto na fisionomia das mulheres e dos homens, lenços desciam dos olhos às bocas, algumas já em densa salivação. A pequena rua que levava ao cemitério alongava-se, interminável e os goiveiros murchavam à passagem do cortejo. Sem braços para sustentar o caixão os homens revezavam-se a cada instante, esbaforidos, afrouxando colarinhos enquanto as mulheres limpavam-lhes os magotes de suor nos lenços amarfanhados. Uma nuvem alaranjada cobria todo o campo-santo quando o grupo passou sob os chorões que ladeavam o portão. Em farrapos, os homens cederam as alças do caixão às mulheres, que esquecidas das rezas engrolavam falações: pedaços de cantigas, parlendas, pragas. Só Honorina seguia ereta, pálida e muda, até que Tonho do Trombone, numa soprada mais forte, desafinou e estrebuchou ao lado da cova aberta. Então ela riu, colheu os cabelos com cuidado por entre a súbita ventania, enrolou um coque e prendeu-o com a batuta de Maestro. Hoje, São José do Limoeiro é uma cidadezinha abandonada. De vivo, só os flamboyants floridos na primavera e o canto da passarinhada das manhãs da minha infância.
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1 comment:
Em algum lugar um realejo ainda toca.
Para Drummond " as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.
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