Saturday, November 12, 2005

O TEMA



Ali estavam todos reunidos à volta da mesa. Olhares interrogativos sobre o que os levara a uma convocação de tal urgência. Tinham como certo que os últimos resultados obtidos não justificariam tal pressa. Se não ótimos, bons sem a menor dúvida.


Mas ali estavam todos, enfatiotados, como determinado para reuniões de tal porte. E assustados. Isto podia ser observado no tamborilar na mesa de Agenor e no uso constante do lenço a enxugar gotículas de suor da testa de Marcos e ainda o piscar insistente de olhos de Turíbio sempre que se via à frente de questões relevantes que dependessem de suas decisões. Numa das extremidades da mesa, Coriolano mantinha-se de cabeça baixa, introspectivo. Era seu jeito de ser. Coriolano era o último a opinar, mas suas opiniões eram sempre acatadas por unanimidade. E tinha sempre à sua direita Herculano, submisso a balançar a cabeça afirmativamente às primeiras sílabas de suas exposições de motivos. Ali estavam as peças principais no tabuleiro. Todas não, pois faltava o rei, Adroaldo Barata, que se orgulhava em dizer que com tal equipe era difícil que alguém lhe desse o xeque-mate.


O silêncio era profundo quando irrompeu na sala "El-rei", como brincavam os colaboradores mais íntimos. Mais íntimos seria um exagero, pois todos sabiam muito bem que dr. Adroaldo não era homem de intimidades.


E tomou a palavra.


– Senhores, imagino que saibam o motivo de os ter convocado em caráter de urgência...


Todos assentiram pela força do hábito de concordar fosse com que fosse saído da boca de "El-rei", que prosseguiu:


– Fui desafiado pelos concorrentes a apresentar um tema que os obrigasse a reformular métodos que mudassem não só a estrutura de suas empresas, como os levasse a repensar suas próprias vidas. Passo aos senhores o desafio pela crença na capacidade de cada um. A reunião será suspensa por meia hora e cada um dos senhores se dirigirá às suas salas, de lá retornando com o tema proposto e a defesa de suas tese.


E Adroaldo "El-rei" Barata retirou-se, permitindo que os demais cumprissem o que lhes havia sido determinado.


Precisa meia hora havia se passado, quando um a um retornou à sala, trazendo nas mãos envelopes lacrados para serem encaminhados a "El-rei".


Como sempre fizera, Adroaldo tocou a campainha que dava início aos trabalhos. Pegou o primeiro dos envelopes, leu para todos o nome de Antero Quintanilha, seu fiel escudeiro, fez uso da espátula de marfim com cabo de prata sobre a qual tanto dissertava, pois fora com ela que seu bisavô preservara a honra da família das maledicências de um desafeto a macular sua santa bisavó, que a bem da verdade histórica nem tão santa tinha sido, e, após abrir o envelope, passou os olhos na folha com o tema e... caiu fulminado por um ataque cardíaco.


O papel caiu-lhe das mãos para baixo da mesa e no corre-corre ninguém mais se deu conta do tema.


No dia seguinte, o encarregado da limpeza recolheu a folha e surpreendeu-se com a leitura...


E somente ele, o mais humilde dos funcionários, ficou sabendo o tema que matara Adroaldo Barata.


Somente ele e Antero Quintanilha, o "El-rei", como passou a ser chamado.


FLORIPES 2






Com seu inconfundível jeito apressado, caminhava pelo calçadão, preocupada com mais um atraso e mais uma provável repreensão patronal.



Chegava a ser cruel a forma como era tratada. Nada profissional, nada legal, nada convencional. Nada convencional... não precisamente. O que seria um tratamento convencional num mundo cheio de valores díspares, onde um pensa que é branco o amarelo que o outro mostra? Era assim dr. Ercílio. Suas regras, sempre mutante, eram normas de existência fugaz. Quando dizia é aquilo, já era outra coisa que queria dizer.



Em exercício de verdadeiro equilibrismo, permanecia no emprego. O salário era o bastante para sua sobrevivência e já não se recordava de alguma coisa que pudesse dar-lhe alguma alegria, além das intermináveis horas de navegação virtual. Sair de casa já era um tento!



E naquele dia ia contando os buracos a serem ultrapassados no calçadão, maneira de se concentrar e abstrair, de antemão, da voz esganiçada do patrão, que sempre dizia em ironia: "O atraso... arranjou um namorado?". Ele sabia que isso a fazia afundar-se no mais central do mundo, no miolo do planeta, destituída de toda sua identidade.



Não adiantaria exigir respeito.



A única forma era a demissão. Isso ela não queria. Não suportaria ficar recortando pedaços de jornal, aqueles ridículos quadradinhos e retângulos, com exigência de boa aparência, domínio de línguas, perfeita utilização de um computador. Quantos Ercílios se esconderiam atrás desses recortes?



No fundo, não tinha clareza se permanecia no emprego para redimir-se das mágoas que carregava por um casamento que há muito havia terminado. E se na sua busca por um novo emprego, justo na mesa do diretor de recursos humanos, se deparasse com ele? Não suportaria tal enfrentamento, não estava preparada, ela carregava a culpa pela separação. Sim, ele ameaçara mostrar ao dr. Ercílio as cópias de mensagens trocadas por ela, em suas intermináveis noites de casada, sem amor, sem prazer, com quantos quisessem uma aventura virtual.



Em meio ao turbilhão de buracos e pensamentos sentiu uma pontada na cabeça, forte, que como um raio a fez tontear e antes que chegasse ao chão, sem sentidos, pôde ver a pasta de onde saltou um livro que se abriu ao seu lado.



A sensação era de torpor ainda, quando percebeu um círculo de pessoas ao seu redor e junto de si o livro. Alguém o pusera ali, imaginando que fosse seu. Instintivamente o colocou na bolsa e, tonta ainda, afastou-se do burburinho, em direção à mesmice de todos os dias: "O atraso... arranjou um namorado?", do dr. Ercílio.


O que mais lhe doía é que aquele homem sabia das circunstâncias de seu divórcio, da solidão a que se impôs, amenizada, apenas, nas salas de bate-papo da Internet, até que o sono a derrubasse em cima do teclado do computador.



Deixara o tempo correr. Não tinha forças para alterar essa vida insípida que havia tomado conta de seus dias. Latejava-lhe a cabeça, latejava-lhe a vontade de mudanças, apenas.



"O atraso... arranjou um namorado?". À pergunta enfadonha e chata do dr. Ercílio, respondeu mecanicamente: "Sim, arranjei um namorado". Se soubesse que teria de apagar definitivamente a luz da telinha do micro, fazendo macro os amores reais e não mais crer nos prometidos por nuvens passageiras do mundo virtual!



E, assim, perdida em seus pensamentos, lembrou-se do livro que chegara pela marca na cabeça, muito mais externa que interna. Pegou-o na bolsa e folheando-o se deparou com um capítulo chamativo: Sexo na Net, amor à parte. Ah... mais uma vez dicas de comportamentos impregnados pela linguagem binária do micro analógico. Como em leitura dinâmica, varreu rapidamente as dicas do livro.



Sexo era do que mais precisava. E cachola a pulsar, circulação acelerada pelo galo e pelo livro, sentiu vontade da noite que era preenchida pelo barulho do teclar e por carícias no mouse. Na monotonia do trabalho que lhe pareceu sem fim, decidiu-se. Aquela noite seria diferente. A fatalidade que a adormecera no rápido desmaio iria ajudá-la a despertar, fazendo aflorar seus instintos para relações reais que já começavam a ser esquecidas.



Ligou o micro, colocou sua senha, floripes1, entrou na sala com seu nickname Floripes2 e aguardou ser abordada.



Oriovaldo para Floripes 2: Oi... Quer tc?



Floripes2 para Oriovaldo: Podemos. De onde tc?



Oriovaldo para Floripes2: Só digo se vc responder... vc tá de calcinha?



Floripes2 para Oriovaldo: Sim.



Oriovaldo para Floripes2: Conta, conta como ela é. Tira, tira, tira ela!



Floripes 2 para Oriovaldo: De algodão macia, verde limão e elástico frouxo.



Oriovaldo para Floripes2: Vc tá gozando da minha cara!



Floripes2 para Oriovaldo: Tô não. Tô falando sério.



Oriovaldo para Floripes2: Quer fazer sexo com um homem gostoso, que cobrirá vc todinha de beijos, começando pelos pés, levando vc ao céu?



Floripes2 para Oriovaldo: Ah... legal. Onde?



Floripes2 para Oriovaldo: Vc caiu? Travou?



Oriovaldo para Floripes2: Oi... amor. Tava aqui, olhando vc.



Floripes2 para Oriovaldo: Então... onde?



Oriovaldo para Floripes2: Aqui, bobinha... minha amoreca.



Floripes2 para Oriovaldo: Vc quer? Eu quero. Mas aqui não, meu amoreco.



Floripes2 para Oriovaldo: ...



Floripes 2 para Oriovaldo: ...



Oriovaldo para Floripes 2: Diga amor. Vc não respondeu...



Floripes2 para Oriovaldo: Já, sim. Conhece um bom motel?



Floripes 2 para Oriovaldo: ...



Floripes2 para Oriovaldo: ...



Oriovaldo: sai da sala.



Era sempre assim. Há meses vinha experimentando essa sensação de inacabado. Brincadeira de gato e rato. Esse Oriovaldo sempre a abordava, sempre dessa forma, caindo sempre, sempre se esquivando.



Mas os ensinamentos do livro diziam que não sofresse com as quedas e saídas repentinas. O ambicionado sexo chegaria e quem sabe? com ele o amor. E lhe pareceu, algumas mensagens adiante, que havia chegado:


Mensageiro do amor/1.78m/72k. Já nas primeiras frases, soube ser moreno, engenheiro, master pela Universidade de Filadélfia, separado. Era tudo quanto precisava naquela noite. Não que se revelasse um Apolo entre tantos de mais de metro e noventa, freqüentadores de academia. Mas já nos primeiros escritos, a elegância no uso das palavras. Não havia dúvidas, era um homem de "bom tom", como sempre sua mãe dizia, na seleção dos futuros genros.



De parte a parte o mistério, até que já clareando o dia, a sugestão do encontro. Acertado o local, a roupa que os identificaria. Lembrou-se do vestido de decote bem cavado e que tão bem lhe marcava as formas, pois estas, inegavelmente, ainda as tinha bonitas. A noite insone, de certa forma, ajudou-a. Deu-lhe a pontualidade e um ar permanente de felicidade.



O que nem foi notado pelo dr. Ercílio pois, tão logo sua pontual chegada, escutou mais uma vez: "O atraso... arranjou um namorado?" Dessa vez, não ligou. Não desceu ao fundo, não escorregou ao miolo da terra. Simplesmente ignorou-o. Mas a noite que se ia próxima tirou-lhe a atenção do serviço pela ansiedade e expectativa do encontro.



Retornou a casa, banhou-se, buscou entre os poucos perfumes o que lhe pareceu o de maior sensualidade, vestiu a lingerie ainda guardada na embalagem. Uma lingerie que prometera a si mesma que seria usada para o homem que mais a extasiasse no mundo virtual para que fosse retirada no real. Só faltava o vestido. Os dois quilos a mais arrochara-lhe, mas aumentara a sensualidade, com os seios a descobrirem-se mais um pouco no decote. Floripes2 estava pronta para o Mensageiro do amor. Por cautela, pegou o livro.



O local escolhido tinha o clima perfeito para o encontro. Aconchegante, o som de um piano suave com "Strangers in the night" inundando de romance o ambiente. Os primeiros passos incertos pela penumbra, aproximou-se do homem solitário de costas para a entrada, tocando seu ombro quase como um afago.



– Floripes?



– Dr. Ercílio!!!!!!!!



No espanto, ficou o livro sobre o chão.



(Co-autoria de Adriana Gragnani)


MAESTRO


Maestro enchia as ruas de sons e aquilo me parecia mágico. Eu o seguia maravilhado e, a cada parada, Maestro era cercado pelas mulheres em maioria. O que as fazia acreditar no que liam era a esperança de que sonhos se realizassem.
Maestro não usava casaca, mas uma camiseta abotoada, sem gola, de mangas curtas nos invernos e verões. Nem mesmo a lama que escorria entre seus pés em dias de enxurrada tirava-lhe a dignidade. Seus sons despertavam manhãs floridas pelos flamboyants na primavera, como os pássaros dos quintais da minha infância.
A caixa a um ombro, o papagaio no outro: trindade – Maestro, papagaio e realejo. Não conhecera o pai, não tivera filho, ninguém lhe sabia do espírito. Em terra de santices e santidades era agnóstico e não sabia. Cria no que via. E bastava-lhe o pão de cada dia e os regalos de quireras ou luxos de sementes de girassol para Valdemar, papagaio chegado de Mato Grosso depois da viagem feita pelo cunhado, em tempos de aboiar.
– Tire a sorte da moça bonita, Valdemar.
O companheiro entrava na caixa, sondava com o bico. Não mais que dez segundos e tremia Efigênia, suspirava Antera, afoitava-se Belinha.
Efigênia derramava-se pelos olhos – ali não buscava apenas sonhos, mas o olhar vindo em mão-dupla; Antera miudava na paciência – não deixava um dia de acercar-se e aguardar que lhe chegasse a vez.
E, enquanto os olhos das duas grudavam nos de Maestro, Belinha seguia o bico de Valdemar, cantarolando a música que vinha da caixa. Ritual findo, quedavam-se desassuntadas as primeiras, enquanto Belinha fincava-se nos saltos a barulhar praça afora ou praça adentro:
– Papagaio de uma figa, “Maestro” de meia tigela, tirar a sorte no realejo é só pra quem é besta... Ainda faço canja desse papagaio...
Mas vestia-se de roxo, carmim, cor que lá fosse determinada pelos ditos do bilhete, que lhe prometia a sorte vinda no bico de Valdemar, mas que conferida no poste nunca chegava. Jogava no touro e dava veado. Sorte contradita. O bicho não dava, o amor não chegava, só os vestidos se multicoloriam na gastança dos tecidos adquiridos no armarinho de seu Murad. Tinha-os de todas as cores e era de fato no que se apegava para ver se a sua vida mudava.
Numa quarta-feira de cinzas qualquer, o trem descarregou na pequena São José do Limoeiro um moço bonito de assanhar moças de prendas. Nas domingueiras, risinhos em histeria a cada gingado do moço e deitação de falas no confessionário. Pecar mesmo não pecavam, não por falta de vontade, mas pela tentação de quem com elas pecasse. Mas ali estava agora Gumercindo, fruto para ser colhido. E haja bilhete da sorte para ver a quem ele caberia. Fiéis a Maestro, Efigênia e Antera ainda assim não deixavam de pensar em Gumercindo, coisa pouca, é bem verdade.
– Capricha na sorte das moças bonitas, Valdemar.Maestro acompanhava o movimento do papagaio, o desdobrar do papelzinho e sondava os olhos das consulentes. “Um forasteiro fará sua felicidade”, “Pense no peregrino”, “A chama do chamego é do recém-chegado”, aliteravam os bilhetes. Toda noite, debruçado sobre a mesa, Maestro caprichava nas sortes. Só faltava escrever: “Grude no Gumercindo!”. Acontecia-lhe de já incomodarem os fricotes da dupla, ele, que só tinha a batuta em riste para a decidida Honorina, que diziam dormir de borzeguins.Saíam as duas a trocar sorrisinhos e ele via de longe o chapéu de Gumercindo desabando-se em cumprimentos. Sorria para Valdemar, esperançoso. A ave queria retribuir-lhe o sorriso, mas eis que chegava a vez de Belinha.
– Valdemar, se afoite e veja se traz sorte para D. Belinha.No balançar da cabeça de Valdemar e lá vinha o bilhete, recomendando jacaré no bicho, azul nas sedas e sorrisos tantos quanto possíveis a quem tinha como meta. Já agora, Gumercindo ao largo, esmerava-se na escolha da lingerie. Pois que se fosse por vontade divina, quem sabe...
E de bico em boca e de boca em bico, assim se perpetuaria esta história como tantas outras em tantos São Josés dos Limoeiros. Mas como bem se diz que o bater da asa de uma borboleta altera o rumo de todas as coisas, em manhã de grande ventania Belinha contrariou os escritos de Valdemar e jogou na borboleta todo o dinheiro que tinha na caixinha. Ato contínuo, trancou-se em casa, porta e janelas cerradas. A notícia correu a cidade – Belinha ensandecia! Os vizinhos relatavam barulhos estranhos de rasgar de sedas e resmungos de longas ladainhas.
No final da tarde, deu no poste – borboleta na cabeça!Nunca se ouviu tanto troc-troc de saltos pela praça. Maestro elevou o som do realejo, ‘seu’ Murad alisou as peças de seda e os ditos de merinó, Gumercindo emparelhou o passo com os de Belinha. Ao largo de tudo, braços dados, Efigênia e Antera despejavam olhares mais que suspeitos em direção a Valdemar.Naquela noite Maestro acordou com Valdemar em seu travesseiro, a engrolar falações: pedaços de cantigas, parlendas, pragas. E do bico lhe escorria uma baba fina, leitosa, que Maestro tentava estancar, suportando as bicadas.
– Psitacose – foi o veredito do boticário. Prenda o bicho na gaiola e deixe no fundo do quintal, lave a casa de alto a baixo com formol. E reze.
Maestro estranhou o ar avexado – nem atinava fosse o boticário tão apegado ao bichinho – mas a única recomendação que seguiu foi a da reza. Dois dias depois Valdemar foi enterrado no quintal em uma caixa de papelão, tendo ao lado o realejo. Honorina logrou retirar, à última hora, a batuta que também se ia junto ao féretro e fincou-se ao lado do travesseiro de Maestro, que engrolava falações: pedaços de cantigas, parlendas, pragas.
Dois dias depois, foi coisa triste de se ver. A bandinha do coreto nas tardes alegres de São José do Limoeiro gemia seus sons na batida do bumbo ritmando a Marcha Fúnebre. De negro, Honorina logo atrás mostrava a palidez só encontrada em rosto de viúvas. Seguiam-se lado a lado Antera e Efigênia em rezas altas, Murad sempre solícito consolava Belinha, sob os olhares de Gumercindo. Depois, uma multidão de 50 contritos limoenses, que mais a cidade não comportava.
Havia sobressalto na fisionomia das mulheres e dos homens, lenços desciam dos olhos às bocas, algumas já em densa salivação. A pequena rua que levava ao cemitério alongava-se, interminável e os goiveiros murchavam à passagem do cortejo. Sem braços para sustentar o caixão os homens revezavam-se a cada instante, esbaforidos, afrouxando colarinhos enquanto as mulheres limpavam-lhes os magotes de suor nos lenços amarfanhados.
Uma nuvem alaranjada cobria todo o campo-santo quando o grupo passou sob os chorões que ladeavam o portão. Em farrapos, os homens cederam as alças do caixão às mulheres, que esquecidas das rezas engrolavam falações: pedaços de cantigas, parlendas, pragas. Só Honorina seguia ereta, pálida e muda, até que Tonho do Trombone, numa soprada mais forte, desafinou e estrebuchou ao lado da cova aberta. Então ela riu, colheu os cabelos com cuidado por entre a súbita ventania, enrolou um coque e prendeu-o com a batuta de Maestro.
Hoje, São José do Limoeiro é uma cidadezinha abandonada. De vivo, só os flamboyants floridos na primavera e o canto da passarinhada das manhãs da minha infância.


DEZ PASSOS PARA A FELICIDADE






No primeiro momento hesitou. Depois respirou fundo e procurou acalmar-se ouvindo as batidas do próprio coração enquanto procurava seguir as instruções do livro de auto-ajuda, recém- comprado, o qual dizia que sua mente poderia organizar suas emoções.



Ótimo! Já adquiria, de novo, a segurança para fazer o que precisava ser feito. Quanto mais adiasse, mais distante ficaria de seus objetivos.



Abriu a pasta, uma bela imitação de couro, preta, brilhante, em alto-relevo lembrando pele de jacaré, e foi direto ao compartimento que reservara para o livro. Na capa, em letras vermelhas, o título que o seduzira: Poder, amor e Dinheiro – 10 passos para a felicidade! Na contracapa a foto do autor, esbanjando felicidade, tendo ao fundo uma bela mansão, rodeada por um jardim gramado.



Releu o primeiro passo: a felicidade está em suas mãos. Cabe a você ir buscá-la: os seres humanos nasceram para serem felizes, embora as pessoas, manipuladas por teorias religiosas e sociais tendam à infelicidade, ao comodismo. Uma criança ao nascer exige dos adultos os cuidados necessários para que sobreviva: quando sente fome, chora e é saciada. Quando está com as fraldas sujas, chora e as fraldas são trocadas. Ela não sente medo de ser rejeitada ao chorar, porque instintivamente sabe que suas necessidades são prioridades que devem ser atendidas, que seus pais ou os responsáveis por ela necessitam que sobreviva para a garantia da preservação da espécie. Mas à medida em que cresce, muitos medos e culpas lhe são ministrados juntamente com sua alimentação. Ela escuta que a mamãe vai ficar triste se ela se recusar a comer um vegetal que detesta, que é feio chorar, enfim, será reprimida para se adequar à sociedade.



Então, continua o autor, este é o primeiro passo para ser feliz: manifestar sua vontade. Ignorar o medo da rejeição introjetado em sua mente durante a infância, enfrentar o desconforto do olhar desaprovador das pessoas que o rodeiam e exigir que sua vontade seja satisfeita.



Mais uma vez respirou fundo, guardou o livro na pasta e com as palavras do escritor ainda ressoando em seu cérebro, decididamente entrou no elevador e apertou o botão número 12.



Passos firmes, sentia-se um exército diante do que iria encontrar. Descobrira-se um novo homem...

Transpôs a ante-sala, sem nem mesmo observar o olhar espantado da secretária por não se anunciar. Nunca fizera isso antes, nos mais de trinta anos em que servira a empresa, alguns dos quais festejados como funcionário-padrão, reconhecido exemplo de lealdade e honestidade. Diante dos seus olhos a placa indicativa de que dali para frente era o que diziam ser o "ninho das águias", recinto privado da diretoria, em que grandes decisões eram tomadas pela palavra única de um homem de pequena estatura, calvo, olhos azuis e barbicha rala.



Ali, na sala forrada de mogno, a grande mesa de uma cabeceira só, já que ninguém até então ousara sentar-se na outra extremidade para enfrentar, olho no olho, o "Sr. Presidente", como era tratado por todos, diretores e funcionários, o senhor do império em que se tornara o pequeno negócio surgido de um empório numa rua do subúrbio. Fora lá que começara como servente, quase um menino, a carreira que agora o fazia entrar naquela sala, um sonho acalentado pelos milhares de empregados da poderosa holding.



A sala vazia dava mais imponência ainda à escrivaninha inglesa de absurdas proporções por trás da qual a figura do "Sr. Presidente" lhe pareceu insignificante.



– Sente-se.



O tom amistoso daquele homem sempre o emocionara. Fora assim durante todos aqueles anos em que sempre era solicitado para as tarefas mais difíceis, muitas das quais lhe exigiam noites insones.



No turbilhão de seus pensamentos, os ensinamentos do livro que trazia na pasta de que este é o primeiro passo para ser feliz: manifestar sua vontade. Ignorar o medo da rejeição, procurar, pela introjeção em sua mente durante a infância, enfrentar o desconforto do olhar de desaprovação das pessoas que o rodeiam e exigir que sua vontade seja satisfeita.



Percebeu que havia um pouco de suor na testa e enxugou-o com o lenço de fina cambraia que sempre fazia questão que vissem quando da tomada de grandes decisões. Havia importância, sim, naquele pequeno lenço. Sempre invejara, em sua trajetória, lenços, fossem eles em bolsos da lapela ou em aparições mágicas, alvos e perfumados, saídos de bolsos masculinos ou de bolsas femininas. Nunca encontrara explicação para o significado do lenço como poder de sedução. Mas enfim...



E foi com o lenço apertado nas mãos que deu início às suas reivindicações que lhe pareciam todas justas. Muitas delas em cobranças intermináveis da mulher e dos filhos. Férias nunca gozadas, gratificações insignificantes, aumentos obtidos por dissídios coletivos, enfim um arrazoado de injustiças que o haviam transformado aos olhos da família numa servidão humana.



Já ia pelo meio quando a voz quase maternal daquele homem de meigos olhos azuis soou como um trovão na imensa sala.



Só então voltou a lembrar-se das fraldas sujas de que falara o livro. Levou o lenço aos olhos num último gesto e jogou-se pela janela, com pasta e livro.



Poder, Amor e Dinheiro – 10 passos para a felicidade!, a exata distância da poltrona à janela...


(Co-autora Henriette Effenberger)

Thursday, November 10, 2005

A PRIMEIRA NOITE DE UM VIRTUAL


– Oi...

– Vamos teclar...

Iniciava-se ali uma experiência inesquecível. Pelas coordenadas que iam sendo dadas, fui construindo letra por letra o desenho mágico da mulher loura virtual, belos olhos azuis, boca sensual emoldurando dentes perfeitos. O corpo... Ah! O corpo... Pelos números fornecidos, não tinha como me enganar: uma sarada freqüentadora das academias: 52 quilos distribuídos em 1,70 m.

As emoções se acumulavam nos fraseados de parte a parte, até que, inseguro por achar que poderia estar sendo invasivo, sugeri um jantar.

Recatada, aceitou, cercando-se de alguns cuidados. Natural que assim fosse. Afinal, tão bela mulher iria encontrar-se com um homem sobre o qual apenas sabia ser um virtual gentil de razoáveis escritos. Muita exposição colocaria em risco suas reais qualidades. Assim, creio, pensava...

Sugeri um restaurante de cuja janela tivesse a visão do colar de lâmpadas da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.Sugestão aceita, parti para os preparativos, com reserva garantida de mesa à, luz de velas, "Lanson" no gelo e o esmero na recomendação ao maître: que o Belluga se fizesse acompanhar de delicados e honestos blinis para que tudo transcorresse de forma a tornar a noite perfeita.

A cada carro que chegava, meus batimentos cardíacos mais se aceleravam. E temeroso que o calor neutralizasse o "Silences" borrifado no blazer que disfarçava os malditos quilos a mais, solicitei que aumentassem um pouquinho mais o ar-condicionado, mesmo diante dos olhares furibundos da senhora de uma mesa próxima já tiritando de frio naquela noite de junho.

Agora sim, era ela. Os louros e longos cabelos contrastavam com a negritude do interior do carro importado. Em passos firmes caminhou na direção da porta, fazendo-me levantar com um largo sorriso.

Não, não podia ser... Mas era.

Todos os olhares convergiram para a figura que acabara de chegar. Uma onda de calor deve ter envolvido a vizinha antes tiritante pela alegria na minha derrota.

Diante do ET que chegara, alguns devem ter imaginado um OVNI na porta do restaurante.

Bem, do virtual para o real, o salto tinha sido olímpico. Dos 52 quilos, era certo que 42 estavam na barriga e no busto. Os olhos azuis haviam marcado um encontro naquele rosto, mas se desencontraram, indo um para cada direção.

Pedi a Deus que me enfartasse. E que fosse fulminante, pois o maître se aproximava para espocar o champagne, o que chamaria ainda mais a atenção dos clientes distantes. Havia súplica no meu olhar para que não o fizesse. Tarde demais.

Diante do inevitável, deixei-me afogar num copo duplo de uísque numa talagada só, antes do brinde.

Homem educado pelos ensinamentos do meu pai de que o bom jogador se revela na derrota, deixei que a noite corresse, já que eu mesmo não tinha mais condições de fazê-lo. Se não pela educação que recebera, mas pelo estado de semi-embriaguês em que já me encontrava.

E a hiena ali na minha frente a mostrar os dentes inegavelmente perfeitos que me induziam a imaginar que estivessem presos com "Corega". Acrescente-se um mastigar interminável. Diria secular.

Impor-me maior sofrimento do que já vinha tendo só se com a intenção da absolvição plenária das penas do purgatório que tanto fiz por merecer. Pedi a conta. Entre salamaleques, o maître esticou-me o papel: 698 reais.

E foi quando me bateu no ouvido tal qual um "telefone" do DOI-CODI a sugestão:

– Que tal esticarmos...

Entre os dentes, fugiu-me a frase: "Esticar só se for no asfalto...”.

Traíra-me o inconsciente e já me via cercado por passantes curiosos, cobertos por plástico preto, iluminado pelas velas trazidas de mesa do restaurante.

Acredito que ela não tenha escutado tal indelicadeza, mas a idéia avançava na medida exata em que automóveis e ônibus passavam em velocidade. Se Deus me poupara do enfarte, quem sabe?...

A noite fora lenta e longa.

Reuni o resto das minhas forças nos dois beijinhos de despedidas. Nesse momento pensei em minha mãe a olhar-me de uma das galáxias que por certo habita, orgulhosa dos ensinamentos.
Dois espirros coroaram a noite. O ar-condicionado ainda por cima me gripara...

CONFLITOS








Sim, pode um dia voltar do coma, esclarece compassivo o médico. Há casos e mais casos... São boas as possibilidades. Mas, certeza? Nenhuma... E voltando à consciência, pode perder a memória elétrica, e a química, registradoras de fatos recentes e de pouca importância. Mas a memória protéica, guardadora de tudo que é importante no transcorrer da vida, será preservada. Trate-o bem, o corpo tem imprevistas e surpreendentes reações. Está bem, fisicamente, as fraturas se consolidaram. Louvo sua decisão de levá-lo para casa. E, precisando, ligue... Deixe-me sempre a par do estado dele...



Lembra bem as palavras do médico... E do fatídico dia em que o acusara de beber demais e engraçar-se com as amigas... Acusação feita na hora mais imprópria, quando, já embriagado, fora para o carro, saindo acelerado... E a tragédia, vizinhos socorrendo-o das ferragens retorcidas do carro imprudentemente dirigido, ele próprio destroçado, olhos vidrados, insensível a qualquer manifestação de dor.



Começavam os dias cinzentos... Que se prolongariam por meses, sempre no empenho de devolvê-lo à vida, torná-lo útil a si mesmo. Se não plenamente, que fosse de tal modo que a mente voltasse ao comando daquele corpo, agora massa inerte. Mas não no leito de um hospital. Cuidaria do marido, ela mesma... E pediu aos enfermeiros que o colocassem na mesma cama onde tanto se haviam amado.



Não fora fácil a decisão de levá-lo para casa. Poderia o carinho compensar as eventuais falhas da terapia? Mas de que outro modo se redimir do mal que lhe causara, levando-o ao estado em que se encontra? A consciência de que perfeição inexiste, de que o lado mulherengo do marido quase que se anulava diante do brilho profissional, do amor e proteção à família, da honestidade no trato comercial, de tantas outras boas qualidades que não soubera ver, só viera ao longo dos dias depois do acidente. Fora cega, obcecada pelo ciúme doentio. Fora ingênua e desavisada ao supor a natureza masculina similar à feminina... E o transcorrer dos anos, o suceder de litros de soro consumidos, fisioterapeutas e enfermeiros tornados rotineiros, especialistas consultados... E sua própria existência se desvanecendo... Qual o preço da redenção? O abandono de seus próprios projetos de vida? Bem verdade que voltara ao trabalho, algumas horas ao dia, terapia para si mesma, mas sempre atenta a uma má notícia... Nas raras saídas com as amigas, a sombra do marido sempre projetada sobre todos, matando qualquer manifestação de alegria... E os sentidos pedindo o que já não pode dar... Geme abraçada a travesseiros amantes... Nos sonhos, desejos aflorando... E a desesperada busca de uma expressão facial, um movimento ainda que espontâneo dos membros. Mas nada. Nada que demonstrasse uma melhora no seu estado mental.



E teria sido mesmo uma boa medida levá-lo para casa? Ouve as amigas dizerem ser comum, diante de um quadro julgado irreversível, o aconselhamento dos médicos para que levem o doente, respondendo às pressões dos planos de saúde. De alguma forma, fora convencida sem que se desse conta?



Sente que a vida lhe escapa pelos cabelos que embranquecem rapidamente, pelas rugas no rosto ainda jovem... Não lhe sobra tempo nem disposição para idas a cabeleireiros, academia de ginástica, às compras... Um erro ao assumir as obrigações onerosas e desgastantes de um tratamento que lhe parece agora infrutífero.



E o novo neurologista, mais uma avaliação, conhece novas e diferentes terapias... Que lhe transmite esperanças. Mas impossível precisar... Poderá permanecer por muito ou pouco tempo no seu sono... Ou morrer a qualquer momento... Mas poderia, sim, repentinamente, acordar, respondendo ao tratamento. Melhor que não mais se culpe, leve-o a passear, a manter contato com o mundo lá fora, mas atenta aos riscos, a um pronto atendimento nas emergências... Voltará diariamente, acompanhará passo a passo à terapia, tem interesse humano e científico.



E sucedem-se as visitas, já não mais voltadas exclusivamente ao paciente, pois há mais, muito mais... Estão a cada dia mais próximos, descobrem-se afins, querem esticar o tempo das visitas, tempo que se encolhe quando juntos, longo por demais quando se aguardam, sentimentos em crescente sintonia... Há o não confessado afeto tornado plataforma sobre a qual se movem... E ansiosos se esperam, se fitam silenciosos, se querem bem, se desejam e não se têm... O clamor dos corpos versus a recusa da consciência... Pouco a pouco, os momentos cinzentos da tristeza vão se misturando ao dos culpados da alegria...



Não, ela não quer que morra, do mais profundo da consciência, não quer. Quer que acorde, que se recupere, que volte a ser o homem sedutor, exagerando nos drinques e nas gentilezas com as mulheres. Sabe que não voltará a amá-lo, contudo não deve perder o senso da responsabilidade e da decência. Mas poderá o querer da razão vencer o fogo da paixão?



Balbucios chegam do quarto, encontra-o acordado... Não, não está sonhando... Todo o seu empenho agora são conflitos. Trouxera-o à vida... Virão os primeiros passos... As primeiras palavras. Mais precisará dela, já agora dividida em duas recuperações, a dele e a dela própria, redescoberta no amor ao homem que a ajudará por tantos meses a repor a vida naquele corpo até minutos antes inerte que acabara de chegar.



Terá um logo tratamento, vai precisar de muita dedicação, mas é certo que voltará à vida normal. Assim as palavras do especialista, do amante, do homem que trouxe luz aos seus dias sombrios... E que se retira silencioso, entra no carro, parte e, mergulhado na tristeza da separação, não percebe que entra na contramão... E a tragédia, motoristas arrancando-o das ferragens retorcidas do carro imprudentemente dirigido, ele próprio destroçado, olhos vidrados, insensíveis a qualquer manifestação de dor...

Sim, pode um dia voltar do coma, esclarece compassivo o médico. Há casos e mais casos... São boas as possibilidades. Mas, certeza? Nenhuma... E voltando à consciência, pode perder a memória elétrica, e a química, registradoras de fatos recentes e de pouca importância. Mas a memória protéica, guardadora de tudo que é importante no transcorrer da vida, será preservada...


(Co-autora Maria Ilsen)


A DESPEDIDA




Dirige-se à estante, o olhar perdido entre o amontoado de recordações e lá está a caixa, o ossuário de amores vividos e perdidos, fragmentos da vida que vê esvair-se a cada despedida. Sobre a mesa, ainda a última carta, escrita minutos antes. A incredulidade mistura-se às lágrimas, embaçando a própria vida...E a palavra adeus surgindo como abstração de si mesma, da conflituosa existência... Carta tão igual a tantas outras em esfarrapadas explicações e justificativas pelo amor que finda... E que a deixam assim, frustrada, sensação de derrota, de inutilidade... Tantos os homens que tinham estrado em sua vida e assim a deixam...Espalhados na solidão cinza do quarto, os objetos marcas das paixões...

Absorta, abre a caixa de lembranças...O que busca? Quem sabe arrancar das fotos o homem que a deixa agora, o homem definitivo, chegara a pensar, desde a noite em que, após tantos desenganos, chegara à solidão da mesa de um bar. Fora gentil na aproximação, romântico na aura de ligeiramente embriagado. E a noite se estendera pela madrugada e por outras noites e madrugadas. O amor preenchendo espaços, curando feridas, novamente a esperança, depois de tantos projetos frustrados no mundão da capital, a rota do seu destino, vinda da pequena e pobre cidade do interior. Tantas as quedas...

Guarda a caixa. E vai à janela atraída pelo piscar do anúncio. O mesmo que em tantas noites, em exóticas fantasias, dera o ritmo luminoso aos movimentos do amor, entre gemidos e sussurros, no cenário de sensações eróticas. Tantas as vezes em que, com risadas zombeteiras, escancaravam a janela e se propunham a fazer amor na provocação ao vizinho voyeur do prédio em frente.

Na cozinha, o aroma do café denuncia que há apenas alguns minutos o perdera... Para sempre? Tinha amado aquele homem, sem cobranças, sem questionamentos, tudo tendo que ser e sendo, como o passar das estações, dos crepúsculos, das noites enluaradas... Juntos tinham estado integrados nos pensamentos, sentimentos e corpos. Uma exacerbação.

E se lembra do rosto bonito, da tristeza velada, do olhar intenso posto nela, o Universo desaparecendo, restando apenas eles, os dois, no momento mágico...Das mãos que lhe percorriam o corpo, querendo a um só tempo afagar e invadir. Atavicamente. Como o homem troglodita arrastara um dia a mulher desejada ao fundo da caverna.

Uma luz que se apagara? Não, não seria um amor passageiro, ousara pensar, amor assim tem que ser para sempre, sem que a própria morte apague, porque amor além dos corpos, transcendendo, algo místico, o inexplicável. “Onde existe luz, existe sombra...”, dissera Sidharta Gautama, o Buda. Aos momentos da paixão iluminada, tinham-se seguido as sombras do abandono?

No toque da campainha, o sobressalto. Joga sobre o corpo o roupão. Para trás das orelhas, o cabelo desalinhado. Busca um sorriso no rosto de tantas marcas, abre a porta. Diante dela, o homem se explica, vem atender ao pedido aflito... Busca coordenar os pensamentos. Pedido aflito? Parece médico no branco das roupas, a maleta, o mesmo jeito do médico bondoso da infância, e que lhe curava as dores... Não entende. Mas sabe. Já o vira antes. Onde? Estranho que surja no momento de que tanto precisa. Sim, mora em frente. Atenderia ao chamado, passaria na volta, claro, aceita tomar um café, comer alguma coisa, sequer fizera o desjejum, na pressa do atendimento... Conversariam. Errara o número do apartamento de onde tinham chamado. É médico.

E volta outras vezes, tantas, conta sobre as dificuldades com a ex-mulher, a separação traumática, filhos longe. A saudade da criançada...E sim, é o voyeur do apartamento em frente, e a vira, sozinha, parecendo angustiada...E inventara o chamado, um modo de ajudar... Tantos os retornos, muda para junto dela, tão grande o apartamento, reconstruiriam a vida sentimental dilacerada por tantas frustrações... E sob o ritmo do piscar das luzes do anúncio luminoso... Sob olhar do novo voyeur... O calendário se desdobra...

Absorta, sequer abre a caixa de lembranças...O que busca ali? Quem sabe arrancar das fotos o homem que a deixa, o homem definitivo, chegara a pensar, desde a manhã em que, pretextando engano, a encontrara angustiada após mais uma despedida...Médico bondoso da alma ferida... A manhã se estendendo em outras manhãs...Em dias e noites... O amor preenchendo espaços, curando feridas, novamente a esperança...Até que...A carta...Que sequer lê...Vagarosa, engolindo as lágrimas que persistem, despe-se maquinalmente, abre a ducha, deixando que a água escorra pelo corpo e pela carta, como a se lavar das nódoas da vida. Purifica-se.

Ao toque da campainha, o sobressalto. Joga sobre o corpo o roupão. Para trás das orelhas, o cabelo desalinhado. E buscando um sorriso no rosto de tantas marcas, abre a porta. Diante dela, o homem se explica, é encanador, mora no apartamento em frente ao dela, vem atender ao chamado de urgência...


Chamado, que chamado?