O tempo infinito um
dia se findará. Mas restará a memória da longa estrada por onde caminhei desde
os gritos de “Aúa” que me assustavam quando eu caminhava pelas mãos da ama até
a pracinha florida pelos flamboyants da minha infância. “Aúa”, a menina excepcional prisioneira pela incompreensão familiar, cujo
som do inconformismo saia das frestas da janela.
Não cumprirei um
roteiro. Deixo para quem suportar a leitura que o faça. Textos, contos, fatos e
experiências são elos da corrente da minha vida que surgem do baú imaginário e
que aqui ficarão desordenados em seus momentos caleidoscópicos, ora formando
intrigantes desenhos, ora apenas cacos. Mas,
sobretudo, sem pretensão literária.
Mas uma história
pede um início e ele surge no...
CASARÃO
No centro de um
grande terreno cercado por dezenas de árvores frutíferas, o casarão brigava por
trás de suas paredes aqui e ali já descascadas os três salões, onze quartos e a
biblioteca de milhar de volumes e traças do tio esquizofrênico. A parte de
serviços tinha no fogão da cozinha minha principal atenção pelo cheiro da
banana dourada e caramelada cujo ponto certo era determinado pela minha avó
cega e bondosa.
Pela cozinha,
tinha-se acesso ao quintal através da escada de granito, com gradil de ferro.
No quintal o grande tacho de cobre com a goiabada fervente enriquecia ainda
mais de aroma o que por mim era visto como pomar e jardim zoológico, tantas
eram as árvores frutíferas e pelos pequenos animais trazidos ainda vivos pelos
tios caçadores.
No corredor, o
telefone que raramente tocava. Na copa, a velha mesa quadrada cercada de não
menos velhas cadeiras para onde éramos chamados às refeições. A geladeira GE
completava o mobiliário e revelava o patamar superior da burguesia da época.
Uma escada sinuosa
de madeira com o corrimão lustrado pela bunda dos netos da matriarca levava
moradores e visitantes ao porão impregnado pelo cheiro do sabão português
esfregado na lavanderia de dois grandes tanques de cimento pelas mãos vigorosas
da lavadeira Guilhermina nas montanhas de roupas dos moradores do casarão e dos
internos do Ginásio Vera Cruz fundado por meu avô João Autto. E no porão, o ir
e vir do ferro a carvão de Acácia, a passadeira de um único cântico repetido
horas à fio – “tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá meu pensamento”.
O pensamento de Acácia ia para o marido cego José, cuja chegada era
anunciada pelas bengaladas na parede
descascada do casarão.
Era no porão que
ficavam quatro dos onze quartos espaçosos, o banheiro dos empregados com a
banheira esmaltada focada pelo meu olhar no buraco da fechadura e uma despensa
com a chocadeira, para onde iam ovos de germinados. Passadas algumas semanas as
cascas iam sendo abertas pelos bicos dos pintos que tornados frangos iam para a
panela, complementando nossas refeições. Só as frangas sobreviviam à chacina
para que outros ovos fossem geminados por “Sultão”, o galo senhor do terreiro e
do canto nas manhãs da minha infância.
A sala de jantar em
tons amarelo e dourado e suas belas sancas revelava ainda certo luxo no mobiliário,
com a mesa para dezoito lugares, dois grandes etagères com tampos de mármore
verde rajado e a cristaleira a reunir serviços de cristal Baccarat e Saint
Louis. Finas porcelanas de Limòges e Rosenthal nunca usadas nos muitos anos em
que por lá estive eram mantidas a sete chaves nos etagères.
A sala de visitas,
de móveis negros Leandro Martins, era forrada de tecido de seda grená estampado
com flores de Lys douradas. O mesmo tecido forrava poltronas, sofás e cadeiras.
A destacar, o par de quadros retratando meus bisavós maternos, João Augusto de
Macedo Soares e Gertrudes, que mostravam o talento do meu avô João Autto por
seu domínio com os pincéis que muito comoveu os sogros retratados. E que
despertaram ainda menino minha paixão pela arte.
À sala de espera
era do mesmo tecido em tom azul escuro, com as mesmas flores de Lys estampadas.
Poltronas, sofá e cadeiras, igualmente forradas com o tecido que cobria as
paredes, a mesa central e um aparador de pés altos e torcidos no estilo
“Manoelino” completavam o conjunto. Grandes cortinados de renda e seda
escondiam portas de acesso e janelas de onde se via o jardim de uma única
roseira e grama crescida sinalizando o abandono.
Todas as portas da
área social davam para a grande varanda de azulejos franceses e, desta, para as
duas escadas de mármore que nos levavam ou ao quintal ou ao portão principal.
O silêncio das
noites era quebrado pelo pio da coruja, pelo sibilar do vento e pelo farfalhar
das folhas secas nas caminhadas dos que saiam em busca dos prazeres da boêmia.
Dentre eles, os tios mais moços, apareciam no casarão com Noel Rosa, que não
cheguei a conhecer.
Era um
tempo de histórias e fantasmas. Das fugas de Honorina, o bicho-preguiça, para o
quintal do vizinho “Cuco”, que aparecia na janela gritando que fossemos buscar
o animal inofensivo para que voltasse ao
ipê do quintal.
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