- Tão jovem...
- Também morre...
- É conhecido?
- Até o momento um morto anônimo. Pela boa aparência deve ter documentos. Mas só a Perícia pode mexer no corpo.
A observação do senhor ao seu lado chama a atenção.
- Assalto?
- Não. Natural mesmo?
- O senhor acha natural.
- Não, minha senhora, eu não acho nada. É o que dizem.
- E agora?
- Agora é esperar o rabecão, a autópsia, a geladeira do IML, até que a família o enterre.
- Que frieza... Como a família vai receber isso?
- Geralmente já dentro do caixão, coberto de flores e entregue na capela para o velório, onde vai rolar um bate-papo, intercalado por algumas piadas para aliviar a tensão.
- Sei... Sei... E a família depois?
- Se tiver, vai pagar o papa-defunto, receber condolências, mandar rezar missa de sétimo dia, de mês e de ano, quando, nesta última, nem mesmo o defunto será lembrado pelos amigos. É possível que nem mesmo a alma dele esteja presente, diante de tantas formalidades.
- Será que vão cremar?
- Pode ser... A ele pouca diferença fará, pois com esse calorão que está fazendo e este terno que está vestindo...
- É mesmo. Por que de terno no calçadão?
- Devia estar esperando o frescão para ir trabalhar quando caiu duro.
- O senhor viu?
- O frescão ou a queda?
- A queda, ora... Nem gritou ou gemeu?
- Sinceramente, não ouvi. Havia uma gritaria próxima, mas não era do defunto. Era de um assalto a um banhista.
- Já tem quanto tempo que ele está aí deitado?
- Deitado não, minha senhora. Mortinho da silva...
- Que seja...
- Deixa ver... Uns quarenta minutos, acho.
- E o senhor está aí em pé esse tempo todo? O senhor o conhece?
- Nunca vi mais gordo. Aliás, deve ter sido a gordura que o matou. E quanto a estar em pé esse tempo todo é melhor do que estar deitado como ele.
- É verdade.
O vendedor de pastéis se aproxima, curioso.
- Morreu por quê?
- Depois de ter comido um pastel de camarão desses que vendem na praia?
- O senhor tá me gozando?
- Não, divagando sob a causa mortis...
- O senhor é médico?
- Não, advogado.
- Da família dele?
- Não, da minha mesmo.
O morto começa a se tornar um acontecimento. Mais e mais pessoas se aproximam.
- O que está havendo aqui? Choque de ordem?
- Não, apenas um morto
O vendedor se afasta temendo que aquele morto resulte numa proibição da Prefeitura de vender seus pastéis de camarão na praia.
- Sorte não ter sido no meio da rua. Seria esfrangalhado por essas vans em alta velocidade.
O comentário tem a aprovação de dois usuários de vans.
- Não faria a menor diferença para ele já morto. Mas o atropelador estaria ferrado.
Já agora o morto ficara num segundo plano, dando vez ao trânsito caótico, má iluminação das ruas, buracos e má gestão municipal, com respingos da estadual.
- A sorte foi ter morrido. Senão ia ter que encarar maca em fila de hospital.
- Como sorte?
- Ora, morrer todos morrem um dia. Ala jacta est.
- O senhor é professor de latim?
- Não, sou geólogo. E no momento faço escavações arqueológicas.
- No Leblon?
- Não, no interior da Bahia, onde tem um sítio arqueológico com alguns ancestrais nossos.
- Herança de família? Produz o quê?
O arqueólogo mostra-se irritado não só pelas perguntas da madame recoberta de protetor solar, mas também pelos empurrões dos curiosos. Antes de afastar-se fuzila:
- Pior que morrer é a ignorância.
UM MORTO NO NECROTÉRIO
- O trezentos e vinte e dois está na geladeira?
- Tá. Acabou de ser entregue pela autópsia.
- Tem um cara aqui para identificar o defunto.
- É parente?
- Como saber se ele ainda não identificou?
- Manda entrar e tira a panela do freezer...
- Ok, ok... João, solta o trezentos e vinte e dois e põe no balcão.
- É ele, sim. O Altamirando, que Deus tenha piedade de sua alma. O que faço agora? O que dizer a minha irmã Cleuza?
- Meu senhor, nessa hora o melhor a dizer e que morreu e está sentado ao lado do Pai Nosso.
- Mas minha irmã é agnóstica?
- Ag o quê? Vai ali ao guichê, procura o Fragoso, que ele lhe orienta como preencher a papelada para liberar o corpo. E não se esqueça de colocar esse “ag” aí no espaço referente a filiação. Esse pessoal da Santa Casa adora criar dificuldades.
- O senhor Fragoso é funcionário?
- Não. Papa-defunto. Gente fina. Os serviços são bons e é dos mais baratos. Caixão dele é de madeira de Lei e não desses de pinho, vagabundos. E as flores não são recicladas como a de muitos que têm gente no cemitério recolhendo coroas e flores que ficam no mausoléu depois do sepultamento.
- Boa tarde, senhor Fragoso, sou tio do Altamirando, o trezentos e vinte e dois, e queria que o senhor me ajudasse no preenchimento da papelada e fizesse o orçamento dos custos para enterrá-lo.
- Vamos lá ao guichê e depois conversamos. Seu nome, por favor?
- Carlos Siqueira, mas sou mais conhecido como Carlão.
O papa-defunto olha o volume do tio e já pensa no gasto de madeira de Lei para o caixão de Altamirando.
Papelada preenchida e o convite para um café.
- O senhor quer enterro de primeira?
- Não precisa ser de primeira. Altamirando era despido dessas vaidades.
- Como? Ele já tinha idealizado como seria o enterro dele?
- Não. Apenas acredito que ele não investiria muito no seu próprio funeral. Digamos... Um enterro tipo classe média iria satisfazê-lo.
- Média A, B ou C? A média hoje anda subdividida.
- Pode ser A mesmo.
- Quantas coroas?
- Ah, são muitas. Têm as tias, as amigas das tias... Altamirando era muito querido por todas.
- Não é isso. Estou falando de flores.
- Uma só para todos os tios e primos. Os tempos andam difíceis e Altamirando era arrimo de família.
- Tem preferência por alguma flor para cobrir o corpo?
- Deixa ver... Hummm... Altamirando gostava muito de cravos. De vez em quando espetava um na lapela. Pode ser cravos.
- Temos caixões de peroba. São mais baratos que os de cedro e fazem o mesmo efeito. Quer alças de bronze? Que sejam entalhados? Garanto a qualidade do verniz. É boneca.
- Boneca não. Altamirando era espada.
- Me referi ao verniz, senhor. Não pré julgo meus defuntos.
- Fica tudo ao seu critério. O que eu quero mesmo é sua orientação e quanto vai me custar tudo, inclusive com gorjetas.
- Vejamos... Prá ficar freguês, faço tudo por oito mil reais.
- Seu Fragoso, não faço a menor questão de ficar freguês. Por sua atenção e gentileza, tá fechado. Tá aqui o sinal.
- Desculpe, senhor Carlão, não trabalho nem com sinal, nem com cartão de crédito. Estou vendo que o senhor é saudável, mas não somos donos de nossos destinos. E já houve alguns casos com colegas em que o responsável passou desta para melhor, antes de quitar o débito.
- Entendo... Entendo...
UM MORTO NO VELÓRIO
- Quem diria? O nosso Altamirando morto na praia...
- Na praia, não. No calçadão, pois o vôlei ele trocou pelo chope já faz algum tempo...
Na manhã daquele janeiro de um ano que se prenunciava excelente, Altamirando abrira o jornal na página do horóscopo: “Leonino com ascendente em Saturno. Momento ideal para organizar sua vida. Excelente no terreno sentimental. Saúde boa. Cor favorável o azul”. E ali estava ele. Morto.
Alguns amigos começavam a chegar e sempre com o lugar comum:
- Tão moço, coitado... Morreu de quê?
- Parada cardíaca.
- Sim, parada cardíaca é do que todos morrem. Não conheço um caso que o cara tenha morrido e o coração continuasse batendo.
Dona Cleuza na cabeceira não parava de espantar a mosca que insistia em aterrissar no nariz de Altamirando, enquanto sua irmã Celeste repunha o filó a cada destampada feita por alguém curioso. Na porta, Carminha, a mais nova das tias recebia os pêsames.
- Grande perda... Grande perda... Fará muita falta o nosso Altamirando.
A frase dita pelo primo Benedito tinha a aprovação dos demais membros da família já agora sem o arrimo.
Não fosse uma ou outra abordagem sobre os excessos que cometia na comida e na bebida, é a coisa ficava
por aí.
Pesaroso, lá estava seu grande amigo Isaac, que perseguia o milhar que o pai trazia no braço, jogando diariamente no bicho, sem que nunca fosse premiado. Sua presença no velório, além de prantear o amigo morto, tinha também por objetivo anotar o número do jazigo para mais uma investida.
- Magali veio?
A ex-quase-futura-noiva era aguardada. Ela o deixara quando se viu substituída pelas amizades que o arrastavam para o boteco e para obesidade.
Adepta de academia, a super malhada Magali era uma referência de elegância e beleza naquele mundo, com seus óculos piratas de grife, adereços e saltos bem altos que davam ao seu caminhar grande sensualidade.
- Muita areia para o caminhão do Altamirando, dizia o invejoso Antero ao vê-la adentrar a capela.
Já havia um número razoável de parentes e amigos se abanando naquele calor infernal quando chegou Nepomuceno, o Nepô das rodas boêmias do Leblon. Chegou trôpego, como de costume, e saudou todos com um “merry christmas”, pois velas e flores lhe traziam as imagens de alguns lúcidos natais de sua vida.
- Tirem o Nepô daqui!
O alarme soou com atraso de alguns segundos, pois uma golfada de vômito causara um tsunami no caixão de Altamirando, para satisfação do papa-defunto Fragoso e desespero do tio Carlão.
Novas flores, maquilagem, o papa-defunto borrifando um Bom Ar flagrância violeta e... Altamirando pronto para ser enterrado.
Findas as rezas, preparativos para o fechamento do caixão e volta Nepô à capela, trovejando:
- Ninguém vai asfixiar meu amigo. O primeiro que tentar, leva com a porra desta tampa no focinho.
Puxa daqui, empurra dali e o tio Carlão de olhos arregalados não vendo a hora de novos custos.
Das ameaças, Aristides fantasiava ainda mais a cena aos gritos de que haviam matado o amigo ao vê-lo com o crucifixo na perna e uma vela espetada na boca entreaberta.
O sino batia anunciando a saída do corpo e os amigos se afastando das alças do caixão.
- Em vida, um mala difícil de carregar. Morto, nem pensar, com esses seus cento e muitos quilos. Que Deus o tenha!
Por falta de carregadores familiares, foram chamados funcionários da Santa Casa para ajudar.
O que parecia o chefe da equipe convocou:
- Vamos lá, pessoal. Estão precisando de guindastes humanos para deslocar o defunto.
O grupo era assustadoramente esquelético.
- Com esse pessoal vai dar zebra...
A menção de um bicho antenou Isaac já de posse do número do jazigo cuja dezena era a do cavalo. A coincidência abriu-lhe um sorriso de esperança.
A previsão do acidente se confirmou no estrondo provocado pela queda do caixão, deixando tio Carlão lívido e já contabilizando o que seria o mais caro funeral de sua vida.
- Deixa que dou um jeito. Não lhe disse que o caixão é dos bons. Nenhuma avaria que impeça de recolocá-lo no carrinho.
O papa-defunto já agora satisfeito com os números era todo delicadeza.
- Por favor – suplicou o tio Carlão – vamos agilizar tudo rapidinho e encová-lo antes que depredem a Capela e eu seja processado pela Santa Casa.
Carlão deixa o cemitério e lá no alto do gradil a frase “Revertere ad locum tuum”. Sinalizou para o taxi antes que o revertessem para aquele lugar diante do estafante dia.
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