Sunday, April 17, 2011

UM MORTO NA RUA


- Tão jovem...


- Também morre...

- É conhecido?

- Até o momento um morto anônimo. Pela boa aparência deve ter documentos. Mas só a Perícia pode mexer no corpo.

A observação do senhor ao seu lado chama a atenção.

- Assalto?

- Não. Natural mesmo?

- O senhor acha natural.

- Não, minha senhora, eu não acho nada. É o que dizem.

- E agora?

- Agora é esperar o rabecão, a autópsia, a geladeira do IML, até que a família o enterre.

- Que frieza... Como a família vai receber isso?

- Geralmente já dentro do caixão, coberto de flores e entregue na capela para o velório, onde vai rolar um bate-papo, intercalado por algumas piadas para aliviar a tensão.

- Sei... Sei... E a família depois?

- Se tiver, vai pagar o papa-defunto, receber condolências, mandar rezar missa de sétimo dia, de mês e de ano, quando, nesta última, nem mesmo o defunto será lembrado pelos amigos. É possível que nem mesmo a alma dele esteja presente, diante de tantas formalidades.

- Será que vão cremar?

- Pode ser... A ele pouca diferença fará, pois com esse calorão que está fazendo e este terno que está vestindo...

- É mesmo. Por que de terno no calçadão?

- Devia estar esperando o frescão para ir trabalhar quando caiu duro.

- O senhor viu?

- O frescão ou a queda?

- A queda, ora... Nem gritou ou gemeu?

- Sinceramente, não ouvi. Havia uma gritaria próxima, mas não era do defunto. Era de um assalto a um banhista.

- Já tem quanto tempo que ele está aí deitado?

- Deitado não, minha senhora. Mortinho da silva...

- Que seja...

- Deixa ver... Uns quarenta minutos, acho.

- E o senhor está aí em pé esse tempo todo? O senhor o conhece?

- Nunca vi mais gordo. Aliás, deve ter sido a gordura que o matou. E quanto a estar em pé esse tempo todo é melhor do que estar deitado como ele.

- É verdade.

O vendedor de pastéis se aproxima, curioso.

- Morreu por quê?

- Depois de ter comido um pastel de camarão desses que vendem na praia?

- O senhor tá me gozando?

- Não, divagando sob a causa mortis...

- O senhor é médico?

- Não, advogado.

- Da família dele?

- Não, da minha mesmo.

O morto começa a se tornar um acontecimento. Mais e mais pessoas se aproximam.

- O que está havendo aqui? Choque de ordem?

- Não, apenas um morto

O vendedor se afasta temendo que aquele morto resulte numa proibição da Prefeitura de vender seus pastéis de camarão na praia.

- Sorte não ter sido no meio da rua. Seria esfrangalhado por essas vans em alta velocidade.

O comentário tem a aprovação de dois usuários de vans.

- Não faria a menor diferença para ele já morto. Mas o atropelador estaria ferrado.

Já agora o morto ficara num segundo plano, dando vez ao trânsito caótico, má iluminação das ruas, buracos e má gestão municipal, com respingos da estadual.

- A sorte foi ter morrido. Senão ia ter que encarar maca em fila de hospital.

- Como sorte?

- Ora, morrer todos morrem um dia. Ala jacta est.

- O senhor é professor de latim?

- Não, sou geólogo. E no momento faço escavações arqueológicas.

- No Leblon?

- Não, no interior da Bahia, onde tem um sítio arqueológico com alguns ancestrais nossos.

- Herança de família? Produz o quê?

O arqueólogo mostra-se irritado não só pelas perguntas da madame recoberta de protetor solar, mas também pelos empurrões dos curiosos. Antes de afastar-se fuzila:

- Pior que morrer é a ignorância.



UM MORTO NO NECROTÉRIO



- O trezentos e vinte e dois está na geladeira?

- Tá. Acabou de ser entregue pela autópsia.

- Tem um cara aqui para identificar o defunto.

- É parente?

- Como saber se ele ainda não identificou?

- Manda entrar e tira a panela do freezer...

- Ok, ok... João, solta o trezentos e vinte e dois e põe no balcão.

- É ele, sim. O Altamirando, que Deus tenha piedade de sua alma. O que faço agora? O que dizer a minha irmã Cleuza?

- Meu senhor, nessa hora o melhor a dizer e que morreu e está sentado ao lado do Pai Nosso.

- Mas minha irmã é agnóstica?

- Ag o quê? Vai ali ao guichê, procura o Fragoso, que ele lhe orienta como preencher a papelada para liberar o corpo. E não se esqueça de colocar esse “ag” aí no espaço referente a filiação. Esse pessoal da Santa Casa adora criar dificuldades.

- O senhor Fragoso é funcionário?

- Não. Papa-defunto. Gente fina. Os serviços são bons e é dos mais baratos. Caixão dele é de madeira de Lei e não desses de pinho, vagabundos. E as flores não são recicladas como a de muitos que têm gente no cemitério recolhendo coroas e flores que ficam no mausoléu depois do sepultamento.

- Boa tarde, senhor Fragoso, sou tio do Altamirando, o trezentos e vinte e dois, e queria que o senhor me ajudasse no preenchimento da papelada e fizesse o orçamento dos custos para enterrá-lo.

- Vamos lá ao guichê e depois conversamos. Seu nome, por favor?

- Carlos Siqueira, mas sou mais conhecido como Carlão.

O papa-defunto olha o volume do tio e já pensa no gasto de madeira de Lei para o caixão de Altamirando.

Papelada preenchida e o convite para um café.

- O senhor quer enterro de primeira?

- Não precisa ser de primeira. Altamirando era despido dessas vaidades.

- Como? Ele já tinha idealizado como seria o enterro dele?

- Não. Apenas acredito que ele não investiria muito no seu próprio funeral. Digamos... Um enterro tipo classe média iria satisfazê-lo.

- Média A, B ou C? A média hoje anda subdividida.

- Pode ser A mesmo.

- Quantas coroas?

- Ah, são muitas. Têm as tias, as amigas das tias... Altamirando era muito querido por todas.

- Não é isso. Estou falando de flores.

- Uma só para todos os tios e primos. Os tempos andam difíceis e Altamirando era arrimo de família.

- Tem preferência por alguma flor para cobrir o corpo?

- Deixa ver... Hummm... Altamirando gostava muito de cravos. De vez em quando espetava um na lapela. Pode ser cravos.

- Temos caixões de peroba. São mais baratos que os de cedro e fazem o mesmo efeito. Quer alças de bronze? Que sejam entalhados? Garanto a qualidade do verniz. É boneca.

- Boneca não. Altamirando era espada.

- Me referi ao verniz, senhor. Não pré julgo meus defuntos.

- Fica tudo ao seu critério. O que eu quero mesmo é sua orientação e quanto vai me custar tudo, inclusive com gorjetas.

- Vejamos... Prá ficar freguês, faço tudo por oito mil reais.

- Seu Fragoso, não faço a menor questão de ficar freguês. Por sua atenção e gentileza, tá fechado. Tá aqui o sinal.

- Desculpe, senhor Carlão, não trabalho nem com sinal, nem com cartão de crédito. Estou vendo que o senhor é saudável, mas não somos donos de nossos destinos. E já houve alguns casos com colegas em que o responsável passou desta para melhor, antes de quitar o débito.

- Entendo... Entendo...



UM MORTO NO VELÓRIO

- Quem diria? O nosso Altamirando morto na praia...

- Na praia, não. No calçadão, pois o vôlei ele trocou pelo chope já faz algum tempo...

Na manhã daquele janeiro de um ano que se prenunciava excelente, Altamirando abrira o jornal na página do horóscopo: “Leonino com ascendente em Saturno. Momento ideal para organizar sua vida. Excelente no terreno sentimental. Saúde boa. Cor favorável o azul”. E ali estava ele. Morto.

Alguns amigos começavam a chegar e sempre com o lugar comum:

- Tão moço, coitado... Morreu de quê?

- Parada cardíaca.

- Sim, parada cardíaca é do que todos morrem. Não conheço um caso que o cara tenha morrido e o coração continuasse batendo.

Dona Cleuza na cabeceira não parava de espantar a mosca que insistia em aterrissar no nariz de Altamirando, enquanto sua irmã Celeste repunha o filó a cada destampada feita por alguém curioso. Na porta, Carminha, a mais nova das tias recebia os pêsames.

- Grande perda... Grande perda... Fará muita falta o nosso Altamirando.

A frase dita pelo primo Benedito tinha a aprovação dos demais membros da família já agora sem o arrimo.

Não fosse uma ou outra abordagem sobre os excessos que cometia na comida e na bebida, é a coisa ficava

por aí.

Pesaroso, lá estava seu grande amigo Isaac, que perseguia o milhar que o pai trazia no braço, jogando diariamente no bicho, sem que nunca fosse premiado. Sua presença no velório, além de prantear o amigo morto, tinha também por objetivo anotar o número do jazigo para mais uma investida.

- Magali veio?

A ex-quase-futura-noiva era aguardada. Ela o deixara quando se viu substituída pelas amizades que o arrastavam para o boteco e para obesidade.

Adepta de academia, a super malhada Magali era uma referência de elegância e beleza naquele mundo, com seus óculos piratas de grife, adereços e saltos bem altos que davam ao seu caminhar grande sensualidade.

- Muita areia para o caminhão do Altamirando, dizia o invejoso Antero ao vê-la adentrar a capela.

Já havia um número razoável de parentes e amigos se abanando naquele calor infernal quando chegou Nepomuceno, o Nepô das rodas boêmias do Leblon. Chegou trôpego, como de costume, e saudou todos com um “merry christmas”, pois velas e flores lhe traziam as imagens de alguns lúcidos natais de sua vida.

- Tirem o Nepô daqui!

O alarme soou com atraso de alguns segundos, pois uma golfada de vômito causara um tsunami no caixão de Altamirando, para satisfação do papa-defunto Fragoso e desespero do tio Carlão.

Novas flores, maquilagem, o papa-defunto borrifando um Bom Ar flagrância violeta e... Altamirando pronto para ser enterrado.

Findas as rezas, preparativos para o fechamento do caixão e volta Nepô à capela, trovejando:

- Ninguém vai asfixiar meu amigo. O primeiro que tentar, leva com a porra desta tampa no focinho.

Puxa daqui, empurra dali e o tio Carlão de olhos arregalados não vendo a hora de novos custos.

Das ameaças, Aristides fantasiava ainda mais a cena aos gritos de que haviam matado o amigo ao vê-lo com o crucifixo na perna e uma vela espetada na boca entreaberta.

O sino batia anunciando a saída do corpo e os amigos se afastando das alças do caixão.

- Em vida, um mala difícil de carregar. Morto, nem pensar, com esses seus cento e muitos quilos. Que Deus o tenha!

Por falta de carregadores familiares, foram chamados funcionários da Santa Casa para ajudar.

O que parecia o chefe da equipe convocou:

- Vamos lá, pessoal. Estão precisando de guindastes humanos para deslocar o defunto.

O grupo era assustadoramente esquelético.

- Com esse pessoal vai dar zebra...

A menção de um bicho antenou Isaac já de posse do número do jazigo cuja dezena era a do cavalo. A coincidência abriu-lhe um sorriso de esperança.

A previsão do acidente se confirmou no estrondo provocado pela queda do caixão, deixando tio Carlão lívido e já contabilizando o que seria o mais caro funeral de sua vida.

- Deixa que dou um jeito. Não lhe disse que o caixão é dos bons. Nenhuma avaria que impeça de recolocá-lo no carrinho.

O papa-defunto já agora satisfeito com os números era todo delicadeza.

- Por favor – suplicou o tio Carlão – vamos agilizar tudo rapidinho e encová-lo antes que depredem a Capela e eu seja processado pela Santa Casa.

Carlão deixa o cemitério e lá no alto do gradil a frase “Revertere ad locum tuum”. Sinalizou para o taxi antes que o revertessem para aquele lugar diante do estafante dia.




Tuesday, April 12, 2011

A HERDEIRA


- É o cúmulo!
Os policiais do serviço de imigração entreolharam-se quem seria aquela mulher que resistia a ficar nua para ser revistada no Aeroporto John Kennedy. A cidade de Nova Iorque não podia se expor a alguém que chegara com 22 malas suspeitíssimas.
- Eu, Carla Fantagrossi, do international jet, às voltas com esses dois brutamontes a quererem tirar minha calcinha em atitudes voluptuosas que melhor se enquadraria num mènage. Evocarei a 5ª Emenda nos tribunais e, se necessário for, irei a Suprema Corte cumprindo o trotoir judicial...
Os policiais olharam-se espantados. Mènage? Trotoir? O que seriam essas duas palavras carregadas de um sotaque francês ditas pela criatura. Só podia ser algum código de traficante, daqueles usados na Casa Branca para adentrar no Salão Oval a serviço do ex-George II.
Carla Fantagrossi chegara não só com 22 malas, mas com algumas coordenadas dadas por seu advogado Spencer Tracy, um sabido vigarista que, nas horas vagas, atuava como hackers nas redes sociais. Fora ele que descobrira ser Carla herdeira dos milhões de dólares deixados em testamento por seu tio Robert, executado na Califórnia pelo exterminador do futuro Arnold Schwarzenegger. Robert matara a mulher tomado por uma violenta paixão pela milhardária Irene Singer, da família dos inventores da máquina de costura que chuleava, chuleava, mas não chegava aos finalmente por ser ele casado.
Duas versões dadas aos milhões de Robert circulavam nas altas rodas frequentadas por nomes expressivos como os dos brasileiros Bike e Nike Batista e Donald Tramp, este notabilizado na canção “The Lady is a Tramp” por Frank Sinatra. Bike descobrira as altas rodas por força de seu próprio nome e Nike chegara ao oitavo lugar no ranking por suas caminhadas pelas montanhas de Minas Gerais, onde descobriu o ferro e ferrou a Vale do Rio Amargo.
Do lado de fora do Serviço de Imigração, Irene Singer dava adeusinhos para a amiga Carla. Como não é incomum, grandes amigas até descobrirem-se candidatas aos milhões de Robert. Fora do testamento, Irene ficara dentro dos milhões de dólares graças ao seu casamento em Las Vegas, dias depois do serial killer ter matado a mulher com um hamburguer estragado do Mac Donald, da cadeia dirigida pelo Pato.
Carla Fantagrossi era “uma uva”, tratamento dado as mulheres em tempos de antanho e hoje substituido por “um tesão”. Nesse ítem, apesar de não costurar para fora, Irene Singer nada ficava a dever, o que , aliás, seria paradoxal pela fortuna que possuia.
Ao lado de Irene, fazendo-a rir, o baiano Caetano, da famosa dupla sertaneja Gil&Caetano, que ela conhecera num trio elétrico em El Salvador, onde os trios elétricos não tocam o chatérrimo axé de Ivete Sem Galo e Daniela Studebaker. Caetano estava em Nova Iorque para apresentar-se no Madison Square Garden para uma platéia de brasileiros tantos eram por lá a comprar muambas na rua 42. Procedentes de Miami e Paraguai já estavam manjados pela Alfândega brasileira.
Apesar dos protestos, A HERDEIRA, foi embarcada de volta à realidade de Petrópolis, uma localidade abaixo da linha do Equador, soterrada e transformada num lindo planalto depois que suas montanhas despencaram mais que os peitos das atrizes da Globo que não se socorrem com o cirurgião Antonio Pitangueira para serem siliconadas.
O retorno de Carla Fantagrossi acabou por trazer a luz as falcatruas do advgado hackers Spencer Tracy. Quanto a Irene Singer voltou às altas rodas montada numa bike do Bike. Mas aí já é outra história.